A Maior Sorte do Mundo

Enquanto caía, refletia.

Logo ao nascer, meio que já via a morte, chegando e se mostrando cada vez mais de perto, e rapidamente. Era como o salto proposital de cima de um edifício, uma ponte ou avião sem paraquedas, mas sem propósito algum. Era simplesmente a vida. Um nascer já com destino traçado, daqueles óbvios, como o dos humanos, talvez um pouco menos vago e previsível. Afinal de contas, tudo ia acabar em água, escorrendo por ruas e calçadas, cabelos e ombros; cegando motoristas, acionando para-brisas, enlameando destinos, complicando festas ao ar livre; sempre molhando.

Quase nunca sozinha, mas existe só, desgarrada.

Quando em grandes grupos, enxurrada, que pode ser um problema. Ou não, dependendo do ponto de vista. Para alguns trabalhadores, no verão, conforme a hora do dia e dos graus que marcam lá fora, pode ser um alívio, especialmente para os engravatados, que gravitam por coberturas sem fim, secas e ar-condicionadas, pois quando saem para a rua e sentem a humidade, celebram como a um gol e sorriem.

Para outras pessoas, as que trabalham na rua por exemplo, um tormento. Pipoqueiros, engenheiros de obra, ambulantes, flanelinhas, todos fazem bico quando chove. Correm para coberturas e lá se protegem – como se machucasse, maldizendo os céus, o pai de todas, suplicando uma pausa; que vem, é verão.

No inverno, a prece é contrária: todos a desejam pois os os lábios pedem, a pele também, da canela então, só uma oração com muita fé. O corpo todo pede, o nariz implora e a boca, sem saliva para reclamar, cala. De noite, no arranhado da secura, vem em sonhos encharcados de esperança, mas a manhã é árida e o sonho se dilui sem água.

A reflexão deve ser rápida, que a queda é veloz e não há tempo; nada, na verdade a perder. O controle de fato não existe, estamos todos ao sabor do vento; e ela samba para lá e pra cá perfazendo uma bonita dança de respingos realçada pelas luzes dos postes da rua que dão um brilho digno de nota ao quarteirão que se avista lá de cima. O suposto fim está próximo, questão de segundos, mas um inesperado golpe de vento a empurra numa diagonal inesperada mesclando-a com outras, engordando-a e a jogando, pesada, num jardim repleto de flores.

A pétala da rosa verga, mas a gota, ciente do seu destino, sorri pois sabe que teve a maior sorte do mundo.

ECp
@euricoescritor

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