Invasão de Domicílio

Via o dedo de longe, chegando sem hesitação, entrando na sua caverna. Imediatamente todos recuavam contra a parede e espreme-espreme. Depois o aperto, o grude e o medo, que ironicamente logo passava assim que algum amigo era arrancado para fora; antes ele do que eu. Sim, éramos extraídos por causa de uma espécie de gosma que reveste todo nosso corpo.

E aquele dedo que entra, e que varia de tamanho, com seus infindos poros-e-micróbios, adere a nós como-cola e somos levados; e depois apertados, e manipulados entre os dedos, polegar e indicador, e por vezes lançados como pássaros mundo à fora em formato de bolinhas. Quase sempre viramos bolinhas.

Mas eu por enquanto escapei. Como já tinha visto lá de dentro os hábitos do corpo onde morava, conhecia mais ou menos os horários certos do sufoco, e me escondo lá no fundo. Bem no fundo, aliás, lá perto da vias aéreas abissais que nem o maior dedo de gigante alcançaria. Talvez uma unha muito bem cunhada para isso, mas não acredito que valha a pena ter um casco desses só para tirar meleca do nariz.
Então vou vivendo.

Meu anfitrião não é, digamos, constante; as vezes fica vários meses sem incomodar e isso ajuda. Fazemos a maior festa durante esse período, sujamos todo o salão; e como multiplicamos vorazmente, está sempre sujo, e é só quando ele assoa o nariz que, digamos, lavamos a alma. Muitos vão embora, é claro, e perdemos muitos amigos e parentes, mas eles estão doentes, por isso tudo bem. Nem lamentamos muito, pois o verde, para nós, é estragado, e quando vão, respiramos melhor.

A pia sofre, pois os mortos grudam, e não saem. Então tem que esfregar o dedo. A pia é branca; para nós, o contraste verde-branco é uma espécie de espelho do futuro e assusta.

E assusta ainda mais quando ele encasqueta que tem alguma coisa fora do lugar, uma caquinha antiga, seca; ele tem que futucar. E convenhamos, e voltemos novamente ao assunto: não cabe! Um dedo não cabe dentro do nariz, direito ou esquerdo. Já olhou no espelho?Vai lá, faz o teste. É das coisas mais esdrúxulas que há. É como tentar enfiar a mão inteira dentro da boca; você vai se babar todo e nunca vai conseguir.
Mas com o nariz, suponho por ser mais flexível (conclusão a que cheguei por ter visto a cena com os próprios olhos diante do espelho), a pessoa até acha que pode-com-tudo. Vai enfiando, arregaçando as pregas de uma venta que eu achava até bonita e fica lá, por minutos, juro, cavucando a areia da praia até achar água. Mas o que jorra é sangue, e o dedão sai vermelho, parecendo ele o machucado. Olha no espelho e vê agora uma espécie de distorção: um buraquinho de um lado, do outro um buracão, e ele olha para o dedo, incrédulo. E enfia de novo para arrancar aquele maldito pedacinho que tanto incomoda; futuca um pouco mais e, só quando começam a descer lágrimas dos olhos, se rende. Veja bem a persistência! Coisa que nós também somos, a propósito; as vezes intratáveis, visguentas e um tanto teimosas.
Como assim, nos tirar da nossa casa à força? 

Não fazia sentido.

Mas a Televisão explica tudo, e era nesse momento da noite, que todos nós prestávamos muita atenção ao que acontecia do lado de fora; ficávamos bem pertinho da borda e corríamos o maior risco – mas era o único jeito de aprendermos alguma coisa. Num programa médico que pra nossa sorte ele estava assistindo, descobrimos que éramos essenciais para a pessoa. A gente protegia, ajuda a respirar. 

Ele sim precisa de nós, e não o contrário. Mas Basta chegar o ócio que o dedo adquire vida própria: parou no semáforo, lá vem dedo. Cinema desacompanhado, dedo. Palestras virtuais, câmera fechada e minutos de tela escura sugerem atividade. Sentimos a dilatação e nossa casa cresce momentaneamente.

Sofremos com esse vai e vem. O corpo produz exatamente o necessário de nós, mas quando o tamanho da casa aumenta, ele supõe que somos mansão, e nos lota. Por isso decidimos que alguma coisa tem que ser ser feita. Nos reunimos na última assembléia e decidimos que vamos ser resistência. “Ninguém larga a mão de ninguém”, um outro ouviu dizer, e acho que vamos seguir essa linha. O decreto então era para que, a partir daquela data, todos fossemos ainda mais grudados. Não bastava mais o visco natural, mas tínhamos que mudar no nosso comportamento para que ele mudasse o dele: amálgama.

Por isso entrelaçamos. A corrente ficou forte e ele quase sucumbiu. Houve um dia inclusive que apelou para uma pinça e chegou arrancar uns poucos jovens, mas a dor foi tanta, e o sangue e as lágrimas, que ouvimos ele mesmo dizer que jamais tentaria uma nova incursão. 

Mas como a lâmina que corta, a farinha que se cheira, a erva que se fuma, o gole que se dá, a mão obsessa. Os dedos também se unem e atacam o corpo todo: os dedões são chupados, as unhas roídas, só as dá esquerda. A pele é arrancada em pequenos nacos pelas unhas da direita e até a cabeça é cutucada pela mesma. Cabelos param de crescer. Os olhos são apertados pelos indicadores e lacrimejam. 

Uma dessa gotas desce e passa bem perto da narina. É o suficiente para nos sensibilizamos, e por uma fração de segundo soltamos as mãos, pesarosas.

#euriscritor

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