Caos

“… entre o conhecido e o desconhecido, havia, e há esse mar de cinza, esses infinitos tons que eclipsam o maniqueísmo das coisas: a dualidade que insiste em habitar aqueles que se deixam reger pela polaridade do mundo. Para os outros, que habitam digamos, nas possibilidades, talvez haja um pouco mais de aventura, pois no perigo dela, curiosa, também se acolhem as surpresas que o mundo do talvez tem a oferecer.”

Ao sabor dessa fala do sábio, pouco se ousou falar. Ele deixou claro seu ponto de que a questão não era exatamente escrever sobre o que se conhece ou não, vai saber, mas sobre certezas e dúvidas, certos e errados.”

Então continua:

“Há, por exemplo, gratificações mais plenas do que a descoberta de um novo caminho para o mesmo lugar? Ou da sensação da areia nos pés, da areia da praia se intrometendo no meio dos dedos, da brisa que vem junto com o aroma, do azul de mil matizes ou mais. Há presentes mais bem dados que estes, do inusitado, do sensível, das percepções?

‘O senhor tem um ponto de vista interessante’, surpreendeu um outro lá do fundo que queria debater, ‘sem dúvida a aventura muito nos serve, mas temos que tangibilizar algumas coisas. O que seria essa ‘sensação’ nos pés, essas percepções de que fala? Como as pessoas ativam isso?’

“É um aprendizado. Ao longo do tempo, esse de sensibilização: olhar para uma árvore por horas e saborear seus verdes. Bochechar o vinho e depois cuspir, se olhar no espelho e ver os dentes rublos. Antes de sair, olhar de novo e fazer caretas. Ouvir Beethoven, chato; Ouvir Vivaldi, um pouco menos; ouvir Tchaikovsky, vem o aceite; Bach, já to gostando: Mozart, adorei, não por que um é melhor que o outro, mas porque já aprendeu. Ouviu o suficiente para perceber as sutilezas; seus ouvidos foram educados pela audição voluntária. Somente a partir daí a arte faz-se conhecer. O desconhecido se abre ao terapeuta e vira palavras nas páginas de Philip Roth, Italo Sveno, entre outros que entraram na floresta encantada, ou na proibida de Hogwarts.”

‘Eu escrevo sobre o que conheço, Sr., disse um autor recém lançado. Acho que a confiança brota a partir da aventura que já conhecemos. Depois a ampliamos; mas a segurança do caminho pavimentado é essencial; como a fundação de um edifício, mesmo que ele depois passe a acomodar bruxos e fantasmas. A gente essencialmente escreve sobre o que conhece e vai viajando ao longo do caminho, mesmo que de vassouras, como você mesmo aventou.’

O sábio se mantém calado pois sabia que tinha engajado a turma. O assunto agora estava aquecido, e aparentemente o auditório estava dividido em dois: aqueles que acreditavam na escrita a partir do que não se enxerga, e os que sustentavam a tese de que, primeiro você escreve sobre o que se sabe, evitando riscos desnecessários, para só depois abrir as asas-abraçando o devaneio.

‘Vocês acham que eu devo escrever uma história ambientada na Escandinávia, ou no Brasil, onde passei a maior parte dos meus anos? Falo sobre as almôndegas que vovó fazia ou sobre os tais scargots que nunca senti? Será que o gelo descrito por mim será como o frio sentido no Alasca? Uma casa cá é igual a casa lá?’

Este parecer do jovem talento colocou, como dizem, ainda mais lenha na fogueira. Buchichos começaram a o-correr e ficou óbvio que o debate não teria, digamos assim, um vencedor; e infelizmente, pois dessa forma a história não tem conflito. E eu me pergunto: como um simpósio sobre literatura pode acabar assim? Está na estrutura do conto a existência-da-treta. Mas até agora, pelo que a gente observa, tudo podia acabar em palminhas mornas. Entre o desconhecido e o conhecido, a trilha do meio estava crescendo. Mas tinha gente que ia num outro caminho.

‘Não podemos esquecer do inconsciente-gente. Tudo advém de lá. Supomos fazer algo conscientemente, supomos. É o que dá pra fazer, pois o inconsciente é soberano, já dizia uma velha amiga. É ele que rege, é ele que comanda. E é tão ardiloso que ainda nos ilude a acharmos que fazemos algo de vontade própria. Dessa forma, se a escrita é pior ou melhor, se de um jeito ou de outro, pouco importa: o que sai pela mão já nos habita por dentro há tempos.’

‘E nos rasga’, diz a bocuda de quatorze, jovem promessa da escrita modernista, muito em acordo com o que acabara de ser dito. ‘E depois vomitamos. Isso é escrever! E quanto menos controle tivermos sobre isso, melhor ainda.’ 

Os puritanos da escrita, que tinham inclusive um clube, e uma evidente rixa com a Moderninha, não se contiveram: “Vomitar é o que vamos fazer em cima de você, garota, se não mudar essa posturinha transgressora.”

Será que a busca a partir do desconhecido não uma espécie de transgressão? me pergunto enquanto o debate continua. Toda boa aventura flerta com a morte, e não há nada mais desconhecido que ela. Taí uma outra perspectiva. Será que vão abordar? O ato de criação, de produção literária como uma espécie de morte?

Os puritanos haviam cutucado a onça com os próprios braços, e ela revidou em silêncio: ‘vocês não conhecem o poder da juventude’, pensou, enquanto eles faziam o mesmo, antagonicamente: ‘você não imagina o poder da tradição’. Mas o silêncio do bicho os incomodou mais, pois eles queriam lutar. Era da natureza deles, os puritanos.

Começou o empurra-empurra; o conflito que vinha nascendo bem-para-além do debate. As vaidades também se sobrepuseram à questão e todos começaram a ter voz ao mesmo tempo. O volume automaticamente se elevou à medida em que a classe baixou e todos ensurdeceram. 

É a revelação, um prenúncio do caos.

Um caminho bem aventurado, no entanto. Contava-se ali uma outra história; uma narrativa com personagens fortes, num cenário propício à imaginação, e um arco curto, pois já estava no final. O empurra empurra esbarrou num tombo, um tropeço e degeneração. Tomava-se partido para lá e para cá, e agora o conhecido e o desconhecido, numa outra acepção, aglutinavam-se, cada um com o seu igual. 

E fecharam os punhos. E seus olhos arregalados eram de incredulidade pois aquilo não fazia sentido. Sua arma sempre fora a voz. Mas de repente se lembraram que já houve muitas mortes, sim, perpetradas por debates literários.

Os punhos fechados se enrijecem ainda mais e seus rostos estão sérios, muito sérios, prontos para um próximo passo, soco, chute, unhadas e puxões de cabelo pois as mulheres estavam lá em peso. E agora, e de certa forma lideradas pela bocuda que, obvia e rapidamente assumiu uma posição de destaque pois queria vomitar de verdade. Adivinha em cima de quem?

Os puritanos se aquietaram por um tempo, mas negociavam parcerias. Pregavam também em nome da literatura, a grande bandeira da hora que todos clamavam ter. E na verdade tinham, pois para início de conversa muito se falou sobre o meio-termo-das-coisas; mas agora, no clima que nenhum ar condicionado consegue amornar, os punhos são atraídos como polos opostos e as pessoas vão se aproximando, o arco se flecha.

As bocas se abrem e bem de perto discutem, trocando amplos borrifos de saliva. O tom vai para o andar da gritaria e ninguém desce do salto; pelo contrário, eles já estão nas mãos das moças, que podem ser mais mortais que punhos.

“Então é isso, A Idade Média vai voltar?”, alguém grita ali do meio ainda tentando acalmar o inevitável. Mas como não continua, o inevitável dá sequência e as pessoas se tocam, e isso basta. “Não encosta em mim, não encosta em mim!” soou como um coro e também como um grito de guerra. As pessoas se engalfinharam e começou a briga. Num primeiro momento, entre os clãs que tinham se formado, mas como o espaço era apertado, em questão de segundos os argumentos se pulverizaram, ninguém é mais de ninguém e algumas pessoas caem no chão. As roupas se rasgam como papéis e serão pintadas em aquarela, ora preto ora vermelho, rosa-com-suor.

O silêncio de outrora foi substituído pelo som-do-soco. Diferente do tiro, mas tão seco quanto. E como normalmente é seguido da dor, que não é seca, e quando multiplicado por dezenas, vêm à mente um Inferno de Dante. Era lá que estavam imersos, numa caverna que cada vez mais lembrava também a de Platão. Com a peculiaridade de que aqui todos a conheciam e mesmo assim escolheram as sombras.

Se escondiam também atrás das cadeiras e por cima lançavam uns aos outros objetos dignos-de-morte: copos, pratos, jarras, e já se podia ver gente com facas na mão. E garfos, e outros pratos já quebrados, pintados. O vermelho contamina os olhos, que contaminam outros, e o pavor se alastra; e todos querem correr ao mesmo tempo pois o verdadeiro e legítimo desconhecido, para além da teoria das palavras, já está inclusive sentado, aguardando o desenrolar dos acontecimentos.

A bruteza cresce entre as celebridades da pelica e a moral decai. O golpe baixo vira aquele gancho de esquerda e o salão vira um ringue, uma tela em branco onde aquelas facas e garfos agora pintam mais uma luta do século.

“O Orgulho da Academia de Letras” logo imaginei a chamada do Jornal do dia seguinte. Ironia era a melhor palavra para representar aquela barbaridade. 

Jamais que o Sábio poderia imaginar uma coisa daquelas. Ele que, a propósito, mostrou muito bem sua chancela quando resolver sacar uma arma no meio do salão e disparar um tiro para cima, quebrando uma parte do gesso que cai justa, e também ironicamente em cima dele. Vem um silêncio diferente, congelante e atrelado a um sorriso totalmente de lado que tomba sobre cada uma das pessoas também. Um pesar de cabeças os leva ao chão, resignados e ainda tremendo.

A Bocuda, de joelhos abraça o puritano, que retribui. Alguns olham e contemplam o que poderia ser um final razoavelmente feliz para a corrente balburdia. Mas ela pega aquele pedaço de prato pintado que jazia ali ao lado, e pinta o pescoço dele como um impulso do maior dos artistas. Daquele que respeita somente as vísceras, o vômito, como ela mesma dizia. 

E depois de espalhar pelo chão aquele vasto monte de sangue que jorrava da lata-pescoço, põe-se a escrever a história que acabara de ser contada.

ECp
#euriscritor

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