Exageros de Pandora

Gostosos como são todos os exageros, exagerei. Mas não no começo, quando ia tudo muito bem.

A viagem de ida fora um tranquilo passeio à cidade das flores, seguida de duas saborosas reuniões: a primeira numa confeitaria defronte a um lago, gente tranquila por todos os cantos, filhos, cachorros e gatos, e sorvetes propícios ao sol de inverno que brilhava e aquecia; a segunda, num castelo, verdadeira exuberância, um espaço de aluguel que explorávamos, eu e uma querida colega de trabalho em busca de novos empreendimentos.

A proprietária, atenta às nossas demandas, logo percebe que o que procurávamos talvez estivesse noutro lugar. Ela própria tinha um sítio a poucos quilômetros daí e logo estávamos à caminho para checar o local.
Leveza e bom gosto alinhados a cuidadores-que-cuidavam de verdade davam ao espaço a cara que nos encantava. Uma casa na entrada, um prédio baixo com salas de terapia, e jardins integrados a amplas copas permearam nossa visita que acabou por se estender além do pretendido.

A tarde já ia ficando escura e eu tinha a esperança de voltar à confeitaria em tempo de comprar alguns doces para levar à casa de um amigo-das-antigas que ia visitar.
Por isso, o incômodo. E talvez pelo mesmo motivo que eu tenha me agitado, agitou-se o Pitbull que nos acompanhava com uma carícia que eu fazia, e levei uma mordida, acompanhada do latido, daquelas que só um cachorro desse tipo sabe dar.

Latejo, mas finjo ‘não foi nada.’

Com a confeitaria na cabeça muito mais que a úmida dor que escorria pelas costas da mão e que eu queria esconder, me despedi rapidamente, sujei a maçaneta da porta do carro de vermelho e parti para a gulodice-seja-la-qual-cor, menos sangue por favor.

Chego às 18:00 em ponto na Zout e Zouet e só com as compras dou início ao deleite, salivando: doces, chocolates e o famoso ApfelStrudel da casa. Agora sim estava pronto para dar sequência aos exageros da generosa e azulada tarde agora a caminho de uma imprevista, longa, suculenta se preferir, noite de emoções.

Já estou na casa do ‘samurai’, amigo de longa data, agora casada com uma Japa de igual excentricidade, numa bela casa também única, ainda que não um castelo, de um condomínio um pouco mais normal da região. Já havia estado por lá antes e sabia que, ao sentar na mesa entre a sala e a cozinha, bate-papos e acepipes prazerosos se estenderiam por algumas, talvez demasiadas horas. Amendoim do pai feito em microondas com muito alho e pimenta, tortas de palmito suculentas e asinhas de frango que grudam no dedo aqueceram o estômago enquanto, e simultaneamente o hidratávamos com latinhas de cerveja, uma após a outra, assim como as trocas de assunto entre grandes e antigos companheiros de aventuras ainda mais estimulantes. Esta obviamente seria mais uma.

Lá pelas onze da noite, resolvo partir, mas não sem antes recusar alguns convites para ficar: ‘dorme aí, amanhã cedo você vai’. Mas como são os exageros, exagerei também na independência: “Não, obrigado. Amanhã tenho que acordar cedo”, típica resposta de quem, não estando bem, logo se prontifica, pelas palavras, a estar.

Quase convencido então, internalizando crenças, abraços de despedida e promessas de ‘volte-sempre’, “claro-voltarei” embarco na barca e parto na escura pista: primeira a esquerda, duzentos metros à direita, siga em frente por um quilômetro e trezentos metros até a rotatória: pegue a terceira à direita, siga em frente por quatorze minutos… waze e eu seguimos como bons companheiros, eu mais atento que ela, e ouço um barulho no pneu traseiro esquerdo. Ela obviamente não deu bola, mas eu, convencido pela crença já instalada, acreditei que era somente uma pedrinha, daquelas que entram no sulco do pneu e insistem naquele costumeiro barulho que alguns motoristas talvez conheçam: tec tec tec tec tec tectectectectec cada vez mais rápido assim como a minha velocidade; quanto mais rápido, acreditava, como sempre acreditei e já aconteceu, que a pedrinha iria embora. Não foi! E a estrada, pixe-ao-luar, me impedia de ver o que deveria ter ouvido: o pneu estava obviamente furado. Mas quando a crença entra, penetra fundo, gruda nos ossos e assume o controle da teimosia, especialmente aquela dirigida a quem insiste em negá-la.

Negando ainda mais então, persisto, pois assim é também a insistência, naturalmente exagerada; e o tec tec continua, mas agora também na cabeça. Estou lúcido, suponho, mas o pneu não; e ele não supõe nada. Em sua integridade de borracha então, começa a manifestar seu desconforto em outros tons: ao tec se assoma uma tendência a puxar o carro para a esquerda, e aquela mão recentemente seca do sangue outrora extirpado pelo querido cão do sítio volta a escorrer e o braço avermelhar; olho para ela, para a breu a minha frente, ouço o pneu chiar um outro som e finalmente me dou conta – mais ou menos – de que pode haver algum problema.

Mas os dissipo imediatamente.

Ao ver a luz, lá da grande estrada, cego novamente e paro, ato contínuo, de pensar bobagens. O carro ainda anda, o pneu continua a reclama, mas o Waze é caixa de pandora; indica: em trezentos metros, pegar à direita e seguir por vinte e três quilômetros até o seu destino.

Quisera, pois percorridos quiçá três, já não consigo mais controlar a besta – sim, o carro virara uma, brigava com o pneu como se fosse uma outra entidade, independente – e, com o volante tremendo e melado de sangue, passei também a suar, vendo pelo retrovisor não a estrada que deixava, mas a frustração de uma aventura cujos indesejáveis e imprevistos percalços adquiriam uma nova estatura.

Me rendo, e no escuro, encosto.
O Tec Tec finalmente vira pisca pisca e eu, sem piscar, entro em modo solução. No acostamento sem luz então, uma densa mata ao lado, do outro pista e vento, me mobilizo para a delirante tarefa de trocar pneu – que já havia trocado à luz do dia numa outra ocasião e que não fora nada legal – as onze e meia da noite, sozinho, cansado e por fim ciente da quantidade de cervejas deixada para trás; e também dos dois, ou três shots de wiskie que tratamos por saideira quando era claramente para eu ficar.

Mãos à obra, foco. Lembro dos treinamentos que dou e que falo de foco: que o foco-isso, que o foco-aquilo, aquele-outro; e agora então é a hora de colocá-lo à prova. Saio do carro e, talvez ainda nutrido por aqueles derradeiros goles de whiskey que potencializavam meu espírito de ‘luta’ ou ‘fuja’, luto. Só não sabia exatamente quais eram meus adversários, que surpreendentemente foram surgindo em etapas, diluindo assim o possível pânico que porventura resolvesse intervir no meu destino.

Assim encarei a escuridão, adversário de peso que, ajudado pela escondida lua e tímidas estrelas contribuía ainda mais para aquele cenário-tipo-dark do que quer que seja.

E então imediatamente me lembrei do amigo que havia deixado para trás; dos tempos em que zombávamos dele por sua demasiada precaução: sempre com uma grande sacola no porta-malas com tudo o que se pode imaginar: cordas, fios, alicates, silver tape, martelo, parafusos, cortador de cinto de segurança, latas com diferentes fluidos, luvas, meias extras, pilhas e, adivinhem, lanternas. Sim, ele sempre carregava uma lanterna, operante – o que significa com pilhas também operantes – consigo.

Achávamos aquilo tudo um absurdo. Mais ainda quando, carentes de espaço para acomodar nossas mochilas e caixas de cerveja para nossas viagens de férias, amaldiçoávamos aquele ‘pessimista’ que por nada cedia o espaço que era religiosamente reservado para suas ditas precauções. “Pode acontecer”, ele dizia.
Agora, quando aconteceu, o otimista aqui sofre, não só de preocupação, mas também de inveja por jamais entender aquele maldito MacGyver que outrora, e agora mais que nunca, tinha razão.

Já eu, sem luz, penava; mas lembrei que o celular tem uma lanterna e, orgulhoso da altivez inesperada, acionei o mecanismo, suposta e metafórica iluminação que nem de longe serviria aos propósitos ali impostos. Sem lugar de apoio, o aparelho, deitado, simplesmente iluminava o céu, grande ajuda. Ao apoiá-lo junto a meu pé, tampouco, pois aí atrapalhava minha já comprometida mobilidade.

Meu primeiro aliado então é meu segundo adversário, e com quem ainda terei algumas altercações ao longo do percurso.

O som dos caminhões passando, em contraste com o absoluto silêncio que vem logo em seguida, aquele de morte e que deixa um rastro sonoro que lentamente se esvai, é um dos outros temores que pousam em mim. Soma-se a isso os velozes faróis que passam voando e trazem consigo longas lufadas de vento, e percebo que estou no meio de um verdadeira e exagerada situação, agora cercado de uma natureza que, de noite e parado – pois estar na estrada em movimento é uma vivência bem diferente daquela de se estar imóvel no acostamento – , se mostra deveras espantosa.

Já o porta malas se mostra amigável; uma aliado.
Pego os equipamentos, macaco, chave de roda e a peça que faz o macaco girar, e sem demora começo a labuta do desparafusamento às cegas. Ora em cima da chave dando pulinhos, ora agachado ou de joelhos no chão, ou deus nas alturas – eterna esperança -, giro como posso, e na medida em que enxergo, os cinco (para mim infinitos) parafusos. Um após o outro vai caindo e pelo tato consigo colocá-los no bolso. E se me perguntarem onde está o celular com a sua lanterna, digo que está lá, ancorado no meu pé direito, meio em diagonal para cima (e sempre escorregando), tentando iluminar o pneu ainda encaixado no carro, malabarismos à parte, dele e meu, pois o legado dos drinks, exagerados que são, perduravam em mim.

Macaco na mão, carro no céu; e um pneu estraçalhado no Chão.
Pego o outro seu irmão, um Continental 205/50 Premium Contact 2 e sinto que estou no caminho. Agora é só colocar o pneu, baixar o carro, apertar os parafusos de volta, e pronto: a luz agora é a do fim do túnel! Mal sabia que era só o começo.

Como encaixar o pneu de volta no carro? Com fazer aqueles cinco minúsculos furos encaixarem na estrutura do eixo? Como levantar aquele pesadíssimo pneu no escuro e fazer o encaixe? Como fazer tudo isso sem luz, sozinho, ainda levemente embriagado e ficando cansado pelos esforços físicos, espirituais, pouco mentais? Nem passara pela cabeça do orgulho ligar para o amigo, a seguradora ou até mesmo a concessionária da estrada. Afinal de contas, pra que não passar perrengue?

Sentei então, mais não chorei. Sabiamente estiquei as pernas para baixo do carro e coloquei o pneu no meu colo. A essa altura, a calça, clara, não tinha mais importância, e ao sentar-me, meus olhos ficaram na altura do eixo do carro, e isso melhorou minha noção de altura. Com o pneu no colo também não precisei fazer muita foça para levantá-lo e colocá-lo no lugar. Um perrengue de fato, mas deu certo.

Sobre a pernas que eu deixara embaixo do carro enquanto fazia o encaixe, correndo o risco de te-las esmagadas, não me importei. Tinha plena consciência do que fazia, mas por alguma razão me pareceu adequado prosseguir; e tinha também outra certeza, daquelas absolutas, pleonasmos à parte, que o macaco aguentaria.
Pneu posto no lugar, agora é apertar os parafusos, baixar o carro, apertá-los um pouco mais, guardar o pneu estragado no porta-malas e ir embora; tudo como manda o otimista figurino: um final feliz e a cabeça no travesseiro, dormindo pesado o sono dos justos.

Mas como que despertado de um pesadelo, assusto com um novo trepidar. Uma enorme cegonha passa a centímetros de mim e ofusca momentaneamente a realidade da situação: não baixei o carro, não apertei o parafuso, não fui pra casa e o único sonho que sonhei foi o delírio da dor que me apagara.

Ao finalizar o encaixe do pneu, e antes que pudesse trazer as pernas de volta, ao menos uma delas, eis que o aliado macaco cede, sem as costumeiras graças da espécie. A dor é dilacerante, mas não a ponto de me fazer apagar de novo. Então sofro, e somente, e agora irônica e religiosamente sóbrio. Respiro fundo, o yoga fala alto e tento não me desesperar. Mas a dor é quase mais que suportável, e aperto a mandíbula, ranjo os dentes, lembro de Elisa.

Minha mão, a essa altura do campeonato era uma das coisas que melhor me restava, e coloquei-a à obra de imediato, para tentar achar o celular. Eu estava meio que deitado sobre o ombro esquerdo, de lado, a perna esquerda lá embaixo e a direita encolhida, mas o tronco direito estava operante. Assim localizei o celular, ainda aceso, iluminando o céu, doce ironia. Era de lá mesmo que eu precisava de auxílio, uma luz no sentido contrário, talvez, pois as de baixo vindas dos caminhões não faziam nada além de cegar-me. E a eles também, pois tampouco me viam.

O medo real de ter a cabeça esmagada dissipa momentaneamente a dor, e passo a sentir, a cada passagem de veículo, o cheiro da sua borracha queimada e o trepidar do mundo que incontrolavelmente assomava ao meu pulsar. Eu estava todo esticado e minha cabeça exatamente em cima da faixa que separa o acostamento da pista!

Mas como temer sobre o que nada se pode fazer a respeito é perda de tempo, dizem os especialistas, foco na luz e alcanço o celular, àquela altura, simplesmente um Deus. Colocaria-o em minhas mãos como um Graal se fosse o caso, mas com uma delas imobilizada, contentei-me em apertar o botão que o despertaria. Confirmações de subjuntivo, o celular não acordou. A chave de roda caíra sobre ele durante aquele caos e o home-button simplesmente se negou àquele possível, salvador último suspiro.

Fiquei sem ar. Recuperei. Relaxei.

‘Alguém há de me achar aqui’, penso. Mas vi também, ou desconfiei de uma poça que se formava abaixo da minha perna presa. Em outras e mais corriqueiras circunstâncias talvez achasse que era somente o óleo pingando do motor, aquela mancha escura no chão. Mas não dessa vez. Alguma parte do carro, alguma ponta deve ter baixado bem em cima da minha coxa. Estendo o braço e sinto um corte-curto, mas profundo. Sei disso pois, não sentindo esta perna, e na ansia de acessar minha escancarada condição, levei a mão ao machucado até onde se podia, e lá se foram 4 dedos.

E desmaio novamente.

Não se sabe ao certo o tempo do sonho, mas o da dor pode ser infinito. O novo despertar então vem junto com uma outra agonia, talvez até pior que a primeira, pois pareço sentir meus ossos. Olho com aqueles olhos de quem não quer ver e, além do sangue, reconheço aquela cor de marfim que aos poucos perde o brilho e começo a ver elefantes; sinto que estou caindo no abismo do colapso novamente, mas dessa vez não deixo. Das lágrimas que me embaçam os olhos e agora me escorrem queixo abaixo, foco (lembram do foco?) e mando tudo para a puta que pariu tentando me acalmar. Já sei que estou inequivocamente, irremediavelmente ferido. Já sei que provavelmente vou perder a perna e literalmente não há nada a fazer. Mando à merda também a velha Pandora de quem agora estou com o saco muito cheio, e relaxo fechando os olhos de propósito. O dia vai clarear e finalmente uma luz vai me ajudar; e assim perdo Pandora, e sorrio.

E adormeço novamente. É inútil brigar com inimigos que nem inimigos são, mas simplesmente parte-de-você que age independe da vontade consciente. Vontade, a propósito que minha perna nem tinha mais. Tinha adormecido totalmente e com ela minha dor; e juntos sucumbimos à natureza da fadiga e entramos no modo esperar-para-ver-no-que-vai-dar.

Um toque no meu ombro me traz de novo à realidade, mas continuo de olhos fechados. Era difícil acreditar que não estivesse mais sonhando, ou indo e voltando daquele eterno Dante. Queria simplesmente que acabasse, assim como a dor que simplesmente adormecera. E eu já estava dormindo.

Mas Pandora retorna, e por linhas invisíveis abre meus olhos de cílio-em-cílio e me faz acordar. Ouço barulhos que não o dos caminhões, dos tremores ou do silêncio, mas vozes. Algumas lá longe, outras aqui, outras pano de fundo e sinto que agora, somente agora – como a gente se engana a respeito do tempo! – cheguei no final do túnel, onde uma luz vermelha paira sobre mim e gira, e gira, e gira.

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