Pássaro em construção

A gente nunca sabe quando alguém vai enlouquecer; e a gente sabe ainda menos se esse alguém pode ser um amigo, uma amiga, um conhecido nosso. É sempre uma surpresa extraordinária, um ‘uau’, um ‘não acredito’ ou ‘quem poderia imaginar’. Mas o fato é que essas coisas acontecem quando menos esperamos e sempre nos deixam meio que esquisitos, pensativos, ‘olha só’, ‘mas justo ele?’

Pois é. Aconteceu comigo. Não que eu, pessoalmente tenha enlouquecido (se bem que poderia, do dia pra noite, como já aventei a possibilidade e como verás logo em breve), é claro, mas alguém muito próximo de mim.

Foi lá em Gonçalves, terra onde nasci, quando tinha ainda meus nove ou dez anos e vivia a caçar passarinhos, prática herdada primeiramente de vovô que por anos sempre vi sair após o almoço para caçar pardais. Ele e seus amigos semanalmente saiam de arma na mão, como guerreiros em missão de vida ou morte e voltavam somente a noite, ora felizes, penas saindo de baldes, ou carrancudos, penas em seu devido lugar, nas asas. Na época eu ainda estava sendo fisgado pelo habito que, a propósito, hoje considero hediondo.

Quem o adquirira ferozmente foi papai. Tão logo o pai dele morreu, assumiu o posto e passou a caçá-los, agora quaisquer que fossem, com tamanha avidez que algumas vezes cheguei a vê-lo dançar no pasto, tamanha a felicidade com a campanha exitosa.

De noite no jantar sem penas, comíamos em silêncio uma fartura de carne alada, agradecendo aos céus pelas habilidades extraordinárias ao meu pai concedidas na arte da pontaria: atenção, silêncio absoluto, imobilidade, POW! Seguido do tiro, um outro silêncio , agora cavernoso, um susto paralisante sentido por todo mundo que estava alí, inclusive eu. Era uma adrenalina difícil de descrever: um disparo seguido de morte, mistura posta à mesa.

Cresci, e do estilingue passei à espingarda. Caçávamos juntos, meu pai e eu. Jamais podia imaginar que a prática fosse fortalecer minhas asas com ele. Mas entendi rapidamente que a guerra faz isso com as pessoas: entrincheirados viram irmãos de sangue, caças voam lado a lado e paraquedistas caem juntos, quase como pássaros, só que estes sempre mortos.

E foi a partir dessa ponderação que comecei a ficar incomodado com esse laço de matança que me ligava a papai, matador. Eu era de outra geração, via o mundo um pouco diferente, muito pela escola que frequentava, e percebia de alguns colegas olhares tornos; ouvia com esforço comentários disfarçados sobre mim, sobre um hábito que o tempo transformou, agora simplesmente inaceitável.

Dessa forma o laço arrefeceu. Cada vez que o via sair para caçar, sumia; ou, como um pássaro arisco, bastava ouví-lo mexendo em suas coisas, inventava um milhão de outras pra fazer e me ocupava com o que quer que fosse: banho que não gostava, tarefas da escola que protelava a todo custo e até mesmo a louça que mamãe implorava há anos, fazia questão de lavar, brilhar, secar, guardar.

Papai, ainda que desconfiado da minha mudança, não mudou. Pelo contrário, rotina na cabeça, pensamento fora dela. Não que minha ausência não lhe tivesse trazido algum desconforto, afinal eu era sim uma boa e útil companhia, mas o ajuste à pratica da solitária caça foi rápida e em questão de semanas ele já estava novamente voando solo. Acordava cedo, coisas arrumadas desde a noite anterior, ciscava algumas migalhas, e sem dar pio já voava porta afora em busca daquilo que a mim e mamãe começava a parecer, no mínimo estranho. Vestia penas. Camuflagem ele diria.

Quanto mais pássaros abatia, mais se tornava um.

De tanto observá-los compreendeu sua dinâmica. Entendeu como dormiam, descansavam, jeitos e trejeitos. Previa o destino do voo a partir do horário da decolagem, e precisava milimetricamente o local do pouso pela velocidade do vento naquela hora do dia.

Em termos de vontade, sabia até o que os pássaros queriam, seus desejos mais íntimos, amores e sexuais. Seus pios tinham significado sim. E ele os traduzia. Numa folha de papel passou a anotar os significados como que em código morse, e a partir daí a comunicação ficou mais fácil.

Assoviava todo dia. Acordava assoviando, ia dormir no assovio. E mamãe me relatou certo dia que até durante o sonho ele assim o fez; tínhamos a impressão de agora conviver com um enorme pássaro dentro de casa. Já não falava mais, ao menos conosco.

Mas uma vez fora de casa, era pura cantarola. Emitia sons para mim e minha mãe indecifráveis e, a partir de certos sinais vindos de outras laias, saia correndo e abria os braços como se asas fossem e seguia seu caminho rumo a rumos por nós também desconhecidos.

Pouco a pouco, grão a grão, o cordão umbilical um dia asas, depenou-se.
E tivemos que colocar papai no caldeirão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*

*

*