FARPAS

Lá estava ele, todo enroscado na cerca.

Havia sangue. Não muito, mas escorria pelos pequenos furos que tinha na pele e pingava na areia que logo o absorvia. Dos furos maiores vinha um fluxo mais grosso que também acabava na terra, em poças nutridas por gotas mais gordas que tamborilavam na superfície, lembrando aquelas que caem na água, mas vermelhas, formando ondinhas.

O chão empapava e o homem urrava.

Tentava se desvencilhar das amarras, mas em vão. As farpas se enroscavam ainda mais em seu corpo já preso, e as que já estavam grudadas entravam ainda mais na pele, rasgando e cortando o tecido. 

Tinha que ficar quieto, imóvel. Mas seu corpo involuntariamente tremia, fazendo as farpas vibrarem. Sua respiração tampouco calmava, pois ao tentar diminuir o ritmo, controlando entrada e saída de ar, peito e abdômen também se moviam e o arame roçava.

O que quer que fizesse, só piorava.

Ele arfava de dor e a única maneira de suportar aquele fardo-da-hora, aquelas malditas farpas, era a imobilidade total. Fechou os olhos e aos pouco pode ouvir o som de passos que também aos poucos se apressavam; vozes que chegavam mais perto e, agitadas, pediam socorro. 

Ele não pedia mais nada pois finalmente aquietou-se.

Os que estavam por perto não sabiam se por quanto tempo ou para sempre, pairava sim uma dúvida no ar. Mas o calor do corpo e alguns espasmos ainda sugeriam vida. 

Um olhar mais próximo dos primos mais ligados causou ainda mais temor, pois havia ganchos nas pálpebras, no nariz que escorria e no lábio inferior que fora fisgado como um peixe. A orelha fora quase arrancada fora e pelo resto do corpo só se viam farpas enegrecidas pelo sangue que coagulava. 

O tempo passava e ninguém ousava-palavra. O acidente parecia catástrofe e a solução não estava ao alcance de ninguém por alí. Os celulares não pegavam de jeito nenhum e a realidade bateu à porta sugerindo alguma ação, qualquer que fosse. Assim um dos peões que acompanhavam o passeio da família pela fazenda montou prontamente no seu cavalo e, acompanhado por uma tia partiu rumo à sede onde esperavam encontrar uma solução, ainda que bem distante. Teriam que galopar uns cinco quilômetros sem ao menos a certeza do que fazer: ambulância, bombeiro, polícia?

Os que ficaram para trás especulam sobre como confortar o ferido e, com ânimos à flor da pele, resolvem também apontar responsabilidades. 

Tudo teve início após uma parada para descanso embaixo de uma providencial mangueira; alguns inclusive apearam de suas montarias para saborear algumas frutas que já tinham cedido. Outros não desceram, sedentos para voltar para casa; e um dos primos cutucava o outro sugerindo uma corrida de trezentos metros até a porteira mais próxima. Apesar das recomendações dos adultos de não seguir com o plano, como declinar a provocação do primo mais jovem? Sempre lhe fizera de capacho, e agora seria só mais uma vez. Idéias antagônicas pois o desafiante, dessa vez, tinha certeza de uma campanha exitosa: ‘esse meu primo sempre foi um bosta: roubou minhas namoradas, colocou a pimenta mais ardida no meu prato e me fez passar vergonha, quebrou o meu carrinho de rolimã, não me emprestou o carro quando eu queria muito, me dedou para o meu pais, inventou mil e um apelidos…

E a lista ia embora, quando deram a largada.

Nobre e Chocolate foram açoitados como a disputa sugeria e responderam adequadamente. Correram como nunca, e a poeira que se levantou foi suficiente para que ninguém conseguisse ver nada logo depois dos primeiros cinquenta metros. Os primos se olhavam enquanto cavalgavam, gritavam e esporavam seus cavalos como se seus calcanhares fossem motores. Um olhava para o outro saboreando o momento-em-movimento; um queria continuidade, o outro ruptura. Por alguns segundos nem respiraram. A velocidade era insana, seus corpos literalmente voavam para cima e para baixo ficando pouco tempo no arreio; suas mãos firmavam as rédeas com força e seus chapéus já tinha voado quando um deles viu que não havia nenhuma porteira a frente, mas sim uma cerca de arame farpado. A vitória cedeu rapidamente lugar à vingança e ele simplesmente olhou para o primo, tirando-lhe todo o foco à medida em que reduzia a velocidade do seu próprio cavalo, Nobre. Chocolate, por outro lado, desprezando os impulsos do seu cavaleiro, mas obedecendo aos seus, brecou de chofre a poucos metros da cerca, lançando o outro que, não conseguindo se segurar na cela, foi lançado como uma flecha em arco diretamente para a cerca onde agora estava suspenso, pendurado numa teia de farpas.

A teia forjada pelo primo, que ele acabara de tecer.

Era uma aranha e agora refletia sobre o que tinha acontecido; ponderava sua participação. Alguns o acusavam pois ele tinha provocado o duelo. Outros falavam sobre fatalidade, mas a sincera troca de olhares durante a corrida era a única prova do que de fato acontecera. Os olhos não mentem.

Quanto a ajuda chegou, três horas depois, o olho do ferido se abriu, somente um risco, uma linha de esperança. E o suficiente  para encarar o outro e selar o reconhecimento de que as farpas dão voltas.

#euriscritor

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