Sono Falta

Acordou. Como se nada tivesse acontecido, ou simplesmente sonhado, acordou. Depois de setenta e duas horas embaixo das cobertas, serenamente despertou para o dia que lá fora brilhava. Do lado de dentro, ainda escuro, alívio. Todos que passaram pelo quarto durante aquele período, achavam que ela não voltaria mais; que desta vez estava presa, confinada para sempre no que acabaram por chamar de sono sem fim.

Desde pequena, sempre fora assim. Vivia o dia e quando chegava a noite, dormia. Mas na manhã seguinte, quando a mesa do café já era só toalha, ela continuava no lençol. No início os médicos diziam que era normal, mas com o passar do tempo, e as horas no escuro aumentado, virou excessão; depois, especulação. Deveria haver algo de errado, mas todas as funções do corpo estavam de acordo com a cartilha. Fisiologicamente também não havia problemas, e a menininha, sempre sorridente, dormia e acordava conforme a vida ditava.

Na escola, logo virou celebridade, pois não raras eram as vezes em que pulava um, dois ou até três dias seguidos. Depois reaparecia, o fantasminha camarada, e se tornava somente mais uma garota comum do terceiro ano. Na manhã seguinte estava lá, na outra também e na seguinte a mesma coisa; mas a cada dia que passava, os colegas iam ficando cada vez mais ansiosos para ver quando ela novamente sucumbiria ao sono profundo. Assim era entendida a coisa: de tempos em tempos a fantasminha camarada tinha que dormir um pouco mais; e dormia. Os professores entendiam a questão e acreditavam, ainda que com alguma desconfiança, que com o tempo o fantasma ia perder a transparência; ledo engano, pois o tempo só aprofundou ainda mais seu sono. À medida que crescia, mais dormia e quando chegou ao ensino médio já o fazia por duas semanas ininterruptas.

Os novos professores se adequaram e os colegas também. Os namorados nem tanto: aquele amor de manhãzinha nunca era garantido e a segunda vez podia demorar uma eternidade.

Veio a faculdade e com ela algumas complicações. Estava ficando difícil para o mundo se adequar a ela. A civilização estava presa ao tempo e também ao processo. Ela não respeitava o tempo do mundo, e nem conseguia, mas o mundo tampouco se importava com ela. Mas a faculdade, por princípio cientista, dobrou os joelhos, e ela continuou por lá. E Começou a entender melhor que o tempo não era somente seu; e que valia dinheiro, e que era escasso. Sim, era bem escasso, ‘e o uso que eu faço dele’, ela se perguntava, ‘seria um desperdício?’ ‘Não’, ela realmente não achava, pois só dormia quando precisava de fato. Os amigos atestavam: ela chegava a usar a técnica dos palitos de fósforo nos olhos, e só quando já estava à ponto de ter as pálpebras perfuradas é que a levavam para casa dormir, para até quando?

Ela na verdade pouco se importava, pois ao dormir, não dormia o sono dos iguais. Noite adentro era pura consciência.

Ela decifrava a fantasia durante o sonho, e pela manhã não havia lapsos, nem resquícios de uma memória esfumaçada. Tudo estava lá, a descoberto, claro como a neve, o dito e o não dito. Suas percepções também voltavam mais aguçadas e sua sensibilidade era um Jardim à Flor da Pele, uma floresta repleta de sentidos que jamais alguém sentiu.

Tato, olfato, paladar, visão e audição, tudo era ampliado, realçado pela duração desse sono único. E como ano a ano ela passa a dormir mais e mais, suas habilidades se desenvolveram(viam) de acordo; ela é puro aprimoramento, como que se durante os períodos em descanso ela se ativasse. Como se o sono fosse claro, e não escuro, um caminho que ia se revelando à medida em que fechava os olhos.

Quando abre, dessa vez já se foram quatro meses; mas o quadro foi pintado, a música escrita e ela mesma já toca o violão. Tinha aprendido um pouco mais de filosofia e podia dar palestras sobre economia sem nunca ter estudado os números. Estava mais bonita, inclusive: os olhos mais azuis, a tez ao invés da pele, os cabelos mais sedosos, os lábios mais carnudos; porém também ficou sem o namorado que cansara de esperar. Apesar da versão retocada que vinha a cada amanhecer, havia o vazio do tempo que existira fora dela: o tempo do outro, que a propósito, passava; e ele envelhecia como todos os demais.

Percebeu com surpresa que o tempo dela, ao contrário, a preservava. A cada descer de pálpebras, também economizava vida. Era como se fosse colocada numa capsula do tempo e trazida de volta maior.

Fazia bem dormir, melhor ainda acordar, fosse quando fosse.

Alguns diziam que era o sono dos deuses, e assim, como num lento piscar de olhos, o fantasminha, aquele camarada deu lugar a Xerxes e seu sono foi ficando cada vez mais poderoso; e desejável. 

‘Não quero mais ficar acordada’, ela dizia consigo’. E se eu dormir por, digamos um ou dois anos, o que vai acontecer? Como vou acordar? Será que consigo controlar meus aprimoramentos?

Haveria limites para o crescimento? pensou e concluiu que valia a pena tentar. Os médicos já tinham concluído que a maior atividade cerebral de fato acontecia nos momentos de sono profundo; no meio-do-dormir, onde se instalava a memória RAM, quando as pálpebras tremendo indicam o despertar do sonho de Freud: inconsciente, sexual, papai-mamãe.

No caso dela não; muito pelo contrário, recordações à flor da pele. Quando acordava, lembrava de tudo, de todos os lugares por onde havia passado, com quem conversara, o que aprendeu, como mudou-mudava-muito. Era a essência da lembrança consciente o tempo-todo & dormindo. ‘Sou uma super-horoina?’ conversava com o espelho e sorria, achando sem-dúvida-que-sim. #boradormir que os tempos são agora e é esse o novo formato.

Cinco anos se passaram e as suposições se confirmaram. Quando acordou, tinha a sabedoria de Odim, a beleza de Cleopatra, a velocidade do Flash e por aí vai. Foi até ao Altar. E foi quando complicou, pois os homens de branco não queriam um outro Deus. ‘Mas eu sou uma’? especulava enquanto crescia e incomodava. E ao mesmo tempo encantava. Era a Deusa do Sono, e como tal elevada, cada dia mais Deusa, fez-fiéis, seguidores da fantasia, uma ode à liberdade, à leveza, ao espreguiçar criativo, sugestão para a próxima obra de Domênico.

Espreguiçou-se. E dormiu-se. E até os homens de branco sucumbiram ao encanto. O mundo aparentemente precisava dormir, e até os que pouco o faziam, escravos do trabalho – ou do prazer – se renderam e deitaram. Encostaram suas cabeças no conforto sugerido pela divindade e deixaram-se levar pela magia. Aos poucos, aqui e ali, o mundo horizontalizou-se. 

E descansou. E os homens descansaram por uma geração. Não houve trabalho, não houve lazer. Ninguém comprou nada, ninguém vendeu. As bolsas pararam e ninguém mais especulou. O dinheiro de uma hora para outra não servia mais para nada – nem para comprar o próprio tempo – e os carros enferrujaram; assim como os ônibus, os caminhões, os aviões. As lavouras estragaram e as larvas adoraram, assim como todos os insetos, que a propósito raramente dormem. E o mundo foi deixado às moscas.

O silêncio prosperou agudamente e o único som que se ouvia dos homens era o ronco. O restante eram relinchos, miados, mugidos, chiados, uivos… a folha que caía, o rio que passava, as ondas que iam e vinham com suas espumas, e não apagavam as pegadas de ninguém pois não havia mais pegadas; ou só as das gaivotas que por sua vez pescavam e crocitavam livres à luz de Fernão Capelo: uma outra espécie de Deus, acrobático, ousado e namorador de limites; assim como a Deusa do sono, mas cujo aprimoramento se dava de olhos abertos.

De olhos fechados, a sociedade continuava a repousar; a expectativa era também de evolução, mas como todos estavam no sono-ninguém-sabia do futuro. Este fora especulado lá atrás, na consciência, e dera muito pano para as mangas. Mas agora o lençol era soberano e toldava opiniões. A agitação acontecia no aparente-breu onde as falas sonoras não ressoam, mas são-sim percebidas. Um dia se ouve o que lá no sonho foi falado e um dia vem à tona.

Um dedo se mexe. Uma perna se estica. Os lábios ainda estão colados; os olhos também. A respiração é consciente e profunda. As pessoas aprenderam a meditar e continuam assim até o tempo da nuvem passar. Ela agora é clara e não pesa sobre a cabeça de ninguém; é silenciosa e se move na rotina daquela gaivota que simplesmente passa-pesca-e-some; desaparece para dar lugar a um outro pensamento que também vai passar; assim como o próximo, o próximo e o seguinte, tudo passa.

O sono que faltava também, e a Divindade que durante todo esse tempo também dormira, desperta. E desperta-observa o mundo que velava espreguiçar. O som do bocejo é como um mantra universal, e todos cantam em uníssono o canto que aprenderam em sonho; na viagem de cem anos que fizeram pelos quatro elementos essenciais. Agua, ar, fogo, a terra é a mesma mas mudada. 

“E agora?” uma voz pergunta a esmo.

Mas não houve resposta. A Deusa voltara a dormir.

 

Ecp

#euriscritor

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