Líquidos

Uma das melhores coisas de se envelhecer junto, e de pertinho, é não ver a idade passar. O tempo parece ser menos cruel com aqueles que convivem, sejam amigos, namorados, marido e mulher. Qualquer que seja a configuração, quando nutrida constantemente, parece enganar a passagem dos dias, anuviando rugas, pintando cabelos e escondendo barrigas. A gente vê a mudança-na-gente, mas não vê no outro, pois o tempo passou para ambos, e essa espécie de espelho da idade funciona sempre que olhamos para as pessoas que estão perto de nós, próximas.

Quando o envelhecer acontece em polos opostos, a história pode ser bem diferente. Com o tempo, chega a memória e a distância que, juntas e  eternas amantes, criam outras narrativas.

A que começa quando o telefone toca já é, por si só inusitada. Quem, nos dias de hoje, telefona para alguém? Joyce. Sim, a Joyce era desse tipo, ousada-que-ligava. Nada de mensagens de texto e similares. Ela queria falar, chamava. Se o outro lado não quisesse, que desligasse. Mas o Beto não desligou, pelo contrário: “Alô”.

“Beto, tudo bem? Aqui é a Joyce, da faculdade, lembra?”

Fazia uns 20 anos que não se sabiam. Cada um tinha ido para um lado depois da Educação Física, e o tempo foi esfumaçando aquelas promessas de memória sempre vivas. Não que as lembranças fossem verdadeiramente reais, pois ele nunca a tocara de fato; nem sequer a beijara. Mas nutrira uma intensa história. Ele fechava os olhos e via carícias, abraços, e depois sem roupa. Os via juntos, beijando-se longos beijos e amando-se sem pressa. Via um casal que acordava e não saía da cama até o meio dia. Depois via o mesmo casal já nos dias rotineiros de um relacionamento de longo prazo. Viu também filhos, depois o ninho vazio, mãos dadas na velhice, e agora eis que o telefone toca-e-traz de volta à superfície a memória das suposições; do que poderia ter sido e que agora, de repente pode. Ah, a Caixa de Pandora.

É lógico que ele lembra-nunca-esqueceu. Assim são as recusas, as rejeições, por vezes nos cravam estacas.

“Joyce, da turma de Oitenta e Três; é você mesmo? Ele já sabia. A voz também fora cravada, mas como o tempo muda o timbre das coisas, veio essa sugestão de dúvida. Ela sorri do outro lado.

“Não acredito!”, ele continua com a euforia contida, mas acredita até demais, e aquelas fotos que mantivera emolduradas na memória são reveladas instantaneamente e se tornam nítidas: aquela da festa do Bicho do primeiro ano, a da Fantasia, ela a Pedrita do segundo ano, as inúmeras fotos do terceiro quando ela brilhara enquanto-tudo, e as que queria inexistentes: as do quarto ano, quando ela namorou, namorou e namorou, outros.

E casou e foi embora.

Ele foi embora também, e depois casou; assim são os assuntos de faculdade, todos juntos um dia, no seguinte separados; esperançosos de um dia-o-retorno, mas que via de regra nunca mais. E ele assimilou: riscou a moça do mapa com sucesso e desenhou uma outra história que se contou por doze anos de casado-com-filhos quando eventualmente acabou. A página agora estava branca novamente aguardando novos pigmentos. 

Do outro lado da linha, Joyce o arco íris.

‘Onde será que estava o  pote?’ ele pondera.

“Pode acreditar, sou eu mesma. Também reconheci a sua voz: continua rouca. Escuta, estou fazendo uma grande viagem de férias pelo País e logo vou chegar ao Rio. Estou me encontrando com vários colegas da Faculdade, mais ou menos uma pessoa por estado. Você mora no Rio, né? Ou morava?

Em outras palavras, o pote de ouro estava logo alí.

“Joyce, que surpresa. E depois de vinte anos. E você está vindo pro Rio!”

“Eu sei que é de supetão, Beto, me desculpa, mas essas coisas tem que ser desse jeito mesmo. Se fosse planejar, não dava certo, né!?

‘Definitivamente não daria’, afirma para si mesmo. Mas como fora pego de surpresa, ‘vai dar’, promete para si mesmo.

“Quando exatamente você chega, Joyce?”

A semana que se seguiu foi paralisante. E eletrizante ao mesmo tempo. Uma mistura de sentimentos e emoções. Ora estava feliz, ora não sabia o que fazer. Pensava no acaso e depois nas coisas premeditadas. Pensou no destino e depois amaldiçoou o Espirito Santo. Saiu para correr e em seguida foi à sauna. Queria suar inquietações, mas escutava repetidamente as poucas palavras que trocara com ela; e buscava interpretações: ‘tinha vários cariocas na época da faculdade. Por que que escolheu justo a mim para visitar?’

Sem respostas então, foi às compras. Nada a ver com o encontro, mas só por que precisava mesmo de uma calça nova, algumas camisas e um tênis que não fosse só para o esporte. O longo cabelo também não estava precisando de um trato, assim como o carro que, apesar de limpo, ganhou uma cera extra. A casa, será que entraremos em casa? pensou. Por isso trocou também a cama. Comprou lençóis quatrocentos fios e espantou as aranhas da adega de vinhos com novas ampolas de Cabernet, e taças.

Fez dieta, quem diria, fez dieta. Olhou no espelho até de lado e aparou aquelas penugens brancas que insistiam em brotar, mas amanhã não. “Amanhã tenho que estar perfeito”, declarou para aquela imagem no banheiro que jamais iria discordar dele. 

Do lado dela, o espelho também falou. E ela se maquiou. Arregalou os olhos e sorriu grande. Abriu a boca, exalou bloqueando o reflexo. Se afastou, empinou o queixo, olhou olhos-nos-olhos. Ficou séria-fez-careta. Apagou a luz. Estava pronta.

Mas ainda faltavam dois dias para sua partida-expectativa; mãe de todas as angústias, aflições, frustrações. Nascem cruéis e ferem; dissimulam e golpeiam por trás, torcendo a faca assim que entra. Ou matam até mesmo pela frente, um tiro a queima rosto no meio da testa espalhando miolos.

Mas nada disso adianta ou importa; nascemos com elas, brigamos, perdemos e elas nascem de novo como um velho e fodido fígado que insiste em se regenerar. Na expectativa de não errarmos novamente, revestimos o engano e voltamos com um novo e renovado entusiasmo: ‘dessa vez vai ser diferente’ é o que ambos esperam.

Ele rói as unhas. Ela arranca cutículas. Ele tem se olhado bastante no espelho; ela foi ao cabeleireiro novamente. Ele sua na testa, ela nas mãos. Ninguém sabe do outro. Ele é avesso às redes, ela-mora-nelas, por isso o desconhecido vira um imã, e o Rio de Janeiro, sendo polo, amplifica a atração disfarçando aquele afogo.

A urgência entra em cena e os dias se alongam. Os minutos viram horas, mas só por alguns dias, e quando chega, ela está lá no aeroporto embarcando. E ele também, mas esperando, apesar das horas que ela ainda demoraria para chegar. Checa os horários, olha na tela do aeroporto, confere com as mocinhas, anda pra lá e pra cá, toma mil cafés, chega novamente para ver o placar os vôos, esquece o o Fla-Flu que estava passando ao lado. Só tinhas olhos para a tela que fora pintada em mil novecentos e oitenta e três. Será que tinha desbotado? ele não cansava de pensar. Fizera mil e um ajustes mentais, misturou o virtual com o real, o passado com o presente, mas a apreensão se mantinha no ar, turbulenta.

Eis que chega Joyce. Eis que ele a reconhece de cara. E ela a ele de rosto. ‘Como ele ficou lindo’ ela pensa enquanto sorri. ‘Parabéns pela decisão Joyce’, se congratula enquanto ele se levanta, chega perto e a abraça, um aperto de mais de 20 anos. Ela o beija uma vez conforme dita-o-rito do seu lado, enquanto ele busca o segundo, tradição fluminense que ele fazia questão de perpetuar. O segundo prevalece, é o beijinho-quebra-gelos, e é sempre seguido de sorrisos.

Vão assim até o carro, onde ele gentilmente abre a porta para ela. Mas um ponto positivo, é o Betinho da Facul virando Beto. Ela se solta e ele também, e quando partem já desfrutam de um vínculo que queria ser, formando-se. A música que ele coloca ajuda ainda mais, e os pés descalços dela sobre o painel corroboram.

“Você se incomoda de eu fumar?” pergunta ela já abrindo a janela. Ele só-sorri lembrando que ela não mudara-em-nada. As pessoas não mudam, era sua crença; portanto desfruta dessa re-vivência de um passado travestido de moderno alternativo, que ela estava toda tatuada, cheia de piercings, batom vermelho bem escuro, longas tranças no cabelo e dreads com anéis de caveira. O pé que estava no console também ostentava anéis e tinha vindo de chinelo; voando.

“Amo essa música”, ela diz enquanto Prince-toca-Kiss, e fecha os olhos. Ele troca marchas enquanto acelera e numa das curvas as mãos se tocam-no-câmbio. A força centrífuga a traz bem para perto dele e faz-se cola.

No primeiro semáforo se engalfinham. O abraço é de mil braços e se apertam como sapos que se grudam e não soltam. O beijo é puro movimento, um vórtice de fogo em bocas molhadas impossíveis de apagar; mas a língua dela é enorme, uma jibóia e o engolfa. Ele nada e tenta respirar, mas ela é o próprio fluxo da água em movimento, uma espiral sufocante que o deixa atordoado, lânguido. E como um cachorro carente então, da sequência com uma enxurrada de lambidas que o ensopa totalmente. No pescoço, no peito, boca e bochechas, subindo pelos olhos, sobrancelha e testa, seu cabelo agora pinga e os ouvidos estão entupidos.
‘Não da mais’, ele pensa; ‘que horror’, e tenta se desvencilhar educadamente daquela melada fusão, empurrando-a para trás.

Não adianta, ela é persistente e avança agora como um lobo instigado pelo sangue do semáforo, cinco, quatro, três, dois, ele conta mentalmente, verde. E parte insensato rumo à festa se enxugando parcialmente com os braços, tentando disfarçar o desconforto daquele ímpeto. Ele suspeitava da volúpia da Joyce, mas o ataque o deixara atordoado, e pensativo: será esse o motivo dos inúmeros namorados? Nenhum eternamente? 

Resolve investigar mais a fundo e deixa o carro fluir. 

As vezes a melhor maneira de conhecer uma outra pessoa é embarcar; deixar-se jogar e ir lidando com os empecilhos à medida que aparecem, sem sobrecarregá-los. O beijo fora bem molhado sim, mais molhado que qualquer outro beijo que já tivera dado – e foram muitos -, mas será que toda aquela humidade estaria confinada somente à boca? refletiu ele tentando repelir a repulsa  de agora há pouco / de pouco atrás. Aí a estória seria outra. Imaginou-se ungido, untado.

As mãos começam a escorregar de lado. Ela vira canhota, ele destro em busca de mel. Ela quer subir na árvore, ele entrar no tronco, mas aquele sangue em brasa embaça o tempo ao volante e eles subitamente chegam ao destino sem nem antes iniciar-a-preliminar. 

Puxa-se temporariamente o freio de mão. Os adolescentes fecham o zíper e entram na festa, encharcados. Aos poucos as pessoas deixam de lado o que estão fazendo e olham pela janela em busca de chuva, nada. Olham para suas roupas, secas. Para seus pares e ao redor, nem um pingo. Mas Betinho e Joyce deixam pegadas. São pintos molhados e sorriem aquele sorriso que não demanda entendimento, mas sugere infinitos olhares. 

A anfitriã os encaminha para um quarto, e a porta se fecha.

Eles voltam a se beijar e ele agora aceita o banho. Ela era filha de Tétis e ele aceita também o oceano. Eles se deitam na areia e abraçam seus molhares. Ela o bebe, e o seca, e ao mesmo tempo o encharca. Sua língua é sinônimo de volúpia, e ela brota de cada um de seus poros; e dos dele também, que se afoga a cada gozo. E renasce a cada volta à superfície para mergulhar novamente, um canto de sereia.

Ou uma sinfonia, ele não sabe distinguir. Os sons do prazer são os sentidos e ele os tem à flor da pele. A música o penetra em vórtices de água e eles nunca tem fim. O formato é o mesmo, mas o líquido nunca é o mesmo; por isso, mil sereias; e ele, flutuando no meio da água, ora calma ora um turbilhão de línguas revezando-se de hora em hora.

Até que cessa. Abrupta e brutalmente.

Ele desperta como que do sono-do-gozo por um gota que cai do teto, ‘talvez o colírio da Deusa’, ele pensa, Mas abre lentamente os olhos e vê que ela não está lá. O som do canto também sumira, e no lugar dele, só o daquela água viscosa que descia pelas paredes, brotava do chão e ia aos poucos inundando o quarto.

eCp
#euriscritor

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