Amor de Pedágio

Amor de Pedágio

Toda semana, segundas, quartas e sextas, as sete da manhã ele pegava o carro para ir ao trabalho. Operava o monótono tic-tac das planilhas financeiras durante todo o dia, e voltava já tardinha, mesmo-caminho-sentido-contrário, passando pelos quatro pedágios que já passara na ida, parando e pagando, não gostava do sistema sem parar.

Por isso sempre trocava-troco, e moedinhas com os Operadores Rodoviários. E com as Operadoras, cuja diversidade era o que mais o atraía. Uma diferente da outra, cada uma de um jeitinho, tipos de cabelo, curtos ou longos, o tempo sempre curto; brincos, tons de voz, batons e bocas, sorrisos de contrapartida.

Nada nunca levado muito a sério, até que um dia uma dessas contrapartidas o atingiu em cheio. O sorriso dela voltou de um jeito! Daqueles que congelam, e até o carro morreu. O de trás logo buzinou e a cancela se abriu. No ímpeto ele avança, mas logo se arrepende: ela ficou para trás! Tenta ir bem devagar, mas logo vem a segunda buzina e ele é obrigado seguir, olhos fixos no retrovisor. 

Ela vai diminuindo de tamanho à medida que os metros passam e ele pensa em como resgatar o passado, mas a estrada é muito dinâmica. Queria voltar, mas não tinha jeito.

Teria que rodar dez quilômetros, pegar o retorno para voltar, encontrar um lugar-para-parar, mas que cancela era a dela? Pondera o trabalho, desiste por enquanto. Segue relutante mas em frente, inconformado por não ter prestado atenção ao nome da moça que estava logo ali, fixado na janela por onde passou.

Por segundos ele o teve na retina, mas o piscar habitual fechara por hora essa cancela. 

Enquanto dirigia então, sua cabeça de finanças começa a calcular, probabilidades: quais as chances de eu encontrar a bela moça novamente? São oito pedágios, ida e volta. Quatro praças, seis pistas. Isso dá doze Operadores trabalhando ao mesmo tempo. Sendo três os turnos, trinta e seis pessoas. Vezes quatro praças: cento e quarenta e quatro funcionários!

Isso se eles não se revezarem, ou alternarem praças, ou trocarem turnos. “Ou se eu parasse com essa insanidade!?” disse para si, acima da música que ouvia. Pareceu uma conversa de doido, como assim, conquistar a garota do pedágio? Quais são as chances? 

Mas como bom homem de planilhas, resolveu investir nela, desacreditando-a. Era plausível sim, por menores que fossem as possibilidades.

Sem fazer muitas contas, ou já considerando as que já tinha feito, concluiu rapidamente que precisaria ficar mais tempo na pista caso quisesse contrariar a sorte. Por isso pede ao seu chefe que o libere para trabalhar full time Home-Office. Pedido aceito, ele logo equipa o carro. Agora tinha em mãos um escritório disfarçado: um Road-Office, que podia mantê-lo na estrada por horas a fio até achar a alma-gêmea-do-sorriso-passageiro.

Passam meses, e com isso ele passa a observar ainda mais. Checa tudo quando passa nos pedágios: a estrutura da praça, as placas, as cancelas e sua erótica dança; o tempo de parada, as luzes, os motoristas que viajam sós, os que não acham o dinheiro, os que o já tem o trocado nas mãos, tudo o que pode dizer respeito ao seu objetivo ele vê; em especial as meninas. Cada uma em sua cabine, outras andando pra lá e pra cá, sempre ocupadas. Sempre solicitas, de marrom e justas. Sabe-se lá o porque, mas combina e enche os olhos dos motoristas que, ante a rotineira monotonia da pista, abrem sorrisos privados que animam a própria viagem.

Ele observa seus andares, para onde vão. Imagina o corpo daquela que só vira o pescoço e imagina que viva de havana também. Por isso faz o caminho inverso, e se excita; a todo pedágio, a cada vai e vem.

Como um vício então, o fardo da fila vira desejo constante, e agora ele ansia pelas paradas. Alonga-as com gordas notas de duzentos ou infinitas moedas-miúdas que sempre se espalham no chão do carro. Algumas ele deixa cair enquanto as entrega, e essas vão parar na pista. Algumas rolam para baixo do carro, que conveniência! Que quando acontece, pisca alerta. Ele desce do carro, calma e gentilmente, e observa. E se agacha para pegá-las, observando ainda mais. E quanto mais procura aquela que lhe roubara o olhar, outros olhos o fitam, e ele corresponde, não tem jeito. O suposto motivo original da maluca empreitada vai aos poucos se diluindo à media que ele passa a enxergar além do que inicialmente previra – e até gostaria -, mas que dada a complexidade das contas à frente, e a variedade das coisas ao redor, resolve deixar na condução o destino. O rosto da moça sem nome ainda perdura, mas a cada passagem a janela daquela cabine vai aos poucos se fechando; enquanto outras se abrem.

As chances estão em cheque; o acaso agora é rei.

O estatístico passa a acreditar na sorte, e a noite também passa a mostrar interessantes caminhos. O número de pessoas trabalhando é menor, e são menores também as distrações: hipnotizantes tentações marrom-amarelas.

Como é bom, no meio da estrada poluída, ver belas moças desfilando para lá e para cá, nos brindando, solitários-sonolentos motoristas, com sua gratuita simpatia, seu andar castanho e por ventura singelos e despretensiosos toques para aqueles cujo sorrateiro mindinho sempre extende sua presença no momento do troco. Da oportuna troca.

Antes mesmo de chegar à cabine, já abria o planejado sorriso, depois a janela e enfim o braço era estendido como que para pegar e beijar-anos-quarenta, a mão da operadora. Como estava sempre bem vestido, o pacote carro-pessoa sempre instigava, e o pessoal todo começou a comentar. E como agora sempre dizia seus nomes, para jamais esquecer o dela, ficou popular entre os Operadores; e agora, quando se aproximava das cabines, era logo celebrado: ‘lá vem ele’, e então pensava em quanto já tinha conquistado durante aquele ano de intensa investigação.

Já entendia todo o funcionamento das praças, os rodízios, os horários de funcionamento, a quantidade de operadores e operadoras e também, de cabeça, o nome de muitas delas. Tinha criado uma planilha, e de dentro do carro, por voz, colocava cada uma delas em sua respectiva célula, à medida em que passava pelas cabines.

Ainda assim, nada da moça que tanto queria encontrar. Iludiu-se momentaneamente com as outras possibilidades, outras curvas para quem qualquer outdoor serve, mas os dias-e-dias sozinho na estrada clamavam não por aventuras, mas por companhia, e uma, exclusiva, aonde estão aqueles olhos?

Já tinha rodado, segundo seus cálculos, cento e quarenta mil quilômetros; quilômetros atentos, olhos de lince, observações de espião, toda uma parafernália tecnológica que custara as vistas da cara, e mesmo assim não conseguia achar a mais bela agulha do palheiro; os cálculos haviam alertado, mas mesmo assim ele insistira.

‘Chega’, chegou a pensar, mas a lembrança daquele dia, lá na distância do calendário passado, grudara como piche; portanto, avançou seu próprio sinal vermelho e acelerou asfalto à quente. À frente se muniu de ainda mais determinação e passou a não respeitar mais nem os feriados, período que até então ele usava para descansar sua lombar, obviamente já bem comprometida pelo tempo que passava sentado. 

Jogou as planilhas fora e foi à desforra. Custe o que custasse, a agulha teceria. Juntou todas as reservas que tinha e investiu: ajustou o carro para gastar menos, fez acordo com os postos ao longo da rodovia e modificou o banco de forma a preservar sua já desgastada coluna.

Passou a acordar mais cedo. As cinco e meia já estava na estrada, e voltava somente à noite. Assim, café da manhã, almoço e jantar, tudo se dava ao volante. Ficou então conhecido no circuito todo, e sempre que resolvia esticar um pouco mais as pernas durante as paradas, pegava uma lembrancinha para o pessoal das cabines.

Logo virou uma celebridade entre os gestores de cada uma das praças. Àquela altura, seu nome, assim como seu carro, sua placa, seus horários, seu interesses, não passavam mais em vão.

A história se espalhava francamente e até as filas aumentavam. Todos queriam encontrar o cara. Todos queriam vê-lo. As meninas-de-marrom agora tentavam prever o horário que ele passaria e ajustavam seus turnos de acordo; os revezamentos foram ampliados e sempre que ele chegava, euforia. Sempre tinha mais que uma pessoa na cabine, até três! E foi aí que ele percebeu que o jogo estava virando. Na melhor versão do ditado ‘não cace, atraia’, sem querer virou um ímã.

Sua popularidade se tornou um polo positivo de atração e se multiplicou. De celebridade local, instigou também adjacências: outras praças de pedágio ficaram sabendo e de boca em boca sua fama ampliou. Não havia mais pedágios sem fila, fosse qual fosse o horário. Motoristas paravam no acostamento para vê-lo e o sistema ‘sem parar’ começou a ter problemas pois não tinha mais movimento. Caminhoneiros lá de cima de suas cabines o viam a distância e buzinavam celebrando sua chegada. O som inusitado atraía curiosos e as monótonas viagens adquiriam um outro tom. 

O destino depois disso era viajar sem ter chegada. As estradas eram um destino em si, e todos queriam saber do celebrado motorista que, ainda incompreendido sobre suas verdadeiras motivações, vira objeto de desejo de quem tem por motivo revelar.

Entra em cena a poderosa mídia. Não só aquela antiga-monopólio, mas a atual pulverizada. E dissipa versões. E cada um lê do jeito que quer. E cada um promove como lhe apetece. Motoristas de carro, de moto, caminhões; borracheiros, frentistas, atendentes de loja, operadores rodoviários, entrevistas. Todos querem dar uma palhinha para a mocinha da TV, que só fala a verdade, e chega voando. 

Nas semanas que se seguem a notícia é ampla e nacional, e repleta de explicações: ele gosta de viajar, é mecânico de carros, testa pneus, ama a estrada, é maluco, acelera por prazer, nenhuma das alternativas. Só ele sabe o verdadeiro motivo da empreitada e resolve revelar.

Em casa, sozinha-quietinha, está a garota dos olhos dele, assistindo o noticiário e especulando sobre quem seria a sortuda por quem aquele cara se apaixonou.

 

Eurico Conceição Palazzo
#euriscritor