SUSTENTANDO OLHARES

Por que ela não olha para mim? Tem medo? Não gosta? Mas nem me conhece. Serei assim tão acanhado? E eu por que não o encaro? Por que não consigo pegar-aquele-par que está justo ao lado do meu?

Pegar olhares, assim dei nome ao exercício que fazíamos. Começar de mãos dadas e olhos fechados para depois encontrar os olhos de alguém. Simples assim, dois que viram quatro e que perduram o quanto a gente aguentar. A palavra é sustentação, mas cada par já tem o seu e fico só, a primeira angústia, olhando olhos já tomados. O tempo não passa; ninguém parece se mexer. Mas num instante sou fisgado e caio em transe. Quero olhar para o teto, para o chão-qualquer-lugar; tudo para não avistar aquele que me vê. 

Supunha querer companhia mas não quero mais. Aquela solidão por não ter sido o escolhido nesse ponto me acolhe e eu prefiro até fechar a vista, mas quando levanto as pálpebras, o tempo do outro já passou e eu caio novamente em solidão. Mas experiente da rejeição de breve-outrora, me posto em alerta e procuro o momento da ação: o difícil momento de olhar mais uma vez. Mas se olho ou sou olhado é questão de ponto de vista; e tanto o seis como o nove me intercalam.

Giro em torno de globos alheios na tentativa de construir meu próprio dueto; que se perfaz num Jazz. Um improviso de musicalidade sem som, mas que toca pelo olhar e vai-se embora. Vem um outro olhar de baixo, é o encaro do Diabo; que pavor das olheiras que até hoje me assombram. Ainda bem que breve, não iria aguentar muito tempo.

Nem mesmo escapara de uma armadilha e já estava em outra: um olhar com dentes. Um sorriso escancarado me esperava bem ao lado. Sorrio também: a metáfora da felicidade cai como uma luva quando queremos agradar, e porta da alma se escancara: sou dilacerado, fuçado por dentro, uma fratura de alma exposta e vísceras que penam. Quero olhar, mas sou eu o espiado! Ela é a médica e eu o monstro, mas logo eu viro doutor e ela toma remédios; depois eu sorrio enquanto ela cansa dos dentes. A boca se fecha e nos damos por completos.

O tempo para refletir é mínimo pois o olhar é agora, recém colhido, fresco e sedutor-lá-vem-ele, lá de cima e só consigo circundar sua expressão: as orelhas, as grossas sobrancelhas, o nariz que é meio torto, os lábios que se abrem. Ouço com atenção, tentando conhecer a ele; mas dispondo todo o meu ouvido ao seu olhar, é ele que entra e me deixo vulnerável. Assim reflito sobre a verdadeira atividade que acontece dentro de mim: uma poderosa reflexão sobre a compreensão dos olhares e do poder que emanam, e tento ressignificar aquele momento; mas ele já devia ter visto o que queria e não estava mais lá. Me trocou por outro olhar.

Fica a suspeita-por-quê me deixou? Ou a questão é uma disputa? Como é natural, o hábito mal jogado pode assumir o comando e passamos a olhar da forma como sempre vimos, especulando, julgando e fazendo as conjecturas que cabem exclusivamente a cada um.

E como são diferentes: as belezas que se conjuram a partir de olhares mágicos. Cada um a sua maneira, são maquiados pelo olhar de quem espia com interesse; e a fotografia que tiramos quando olhamos brilha. Todo mundo ficou mais bonito, e por pouco ao pé da letra, pois se não foi num piscar de olhos, foi num olhar que insistiu em ficar.

Encontro os de Adriana; ela encontra os meus. Pinta um sorriso-entrão, casual-pretensioso, mas negamos o impulso pois a roda era serena – tinha que ser -; então engolimos aqueles dentes que queriam sair e fechamos os lábios que queriam abrir, jogando o jogo do olhar que queria parar de gracejo. Viraram malícia e trejeitos e o corpo todo passou a falar. E nossos olhares se tornam profundo-infinitos. Eu me infiltro nela, ela se insinua em mim: ela me pergunta e eu respondo; e vice versa me seduz, diz verdades, eu descubro segredos.

A história se engendrava e nós não desgrudávamos. Tecíamos um fio narrativo a partir dos cílios que se alongavam, das sobrancelhas que voavam e do perfume que emanávamos, distribuído pelo ventilador que soprava nossas intenções para lá e para cá.

O tempo para nós parou. Mas a roda não, e os pares que se perfaziam a cada quinze, trinta segundos, perderam para sempre nossos olhares; e nós os deles. Camuflados pelas buscas dos outros por pupilas alheias, passamos despercebidos e ficamos ilhados-em-nós, felizes náufragos com tempo suficiente para que as intenções já especuladas criassem uma espécie de corpo. Uma energia quase palpável que fluía em linha reta de um ponto ao outro do círculo: nossos olhos, ciclopes. 

O beijo seria de borboleta não fosse o próprio monstro grego, forjador dos raios usados por Zeus, a forjar agora línguas que, em chamas, se retorcem numa dança que nos cegou-escancarados.

Como numa caverna, onde sem luz só se tateia, foi o que fizemos. Os dedos se enlaçaram e depois os braços. Minhas mãos estão na sua nuca, entre fios; as dela nas minhas costas e as roupas em nenhuma. Nunca houve roupa. Nos deitamos no espaço e flutuamos ritmados numa dança que não precisa de luz; pois ouço um jazz, saboreio morangos, toco sua seda da índia e sinto o aroma do sândalo. Eu gosto de rock, pêssego, a textura do linho e o cheiro das folhas verdes, da terra molhada. E ela também me sente-os-sentidos.

Fundimos. O calor que nos abrasa nos molda e retorcemos em busca da lava perfeita; do fluido derretido que escorre trilha abaixo ao encontro do mar, em tons de vermelho; e que quando se encontram, explodem num exótico borrifo esfumaçado, o gozo rugido dos vulcões, que nos desperta e demora a aquietar nossos corpos suados.

Ainda ofegantes abrimos os olhos. Os outros pares já estão escancarados e se dirigem a nós, esperançosos. Mas eu simplesmente atravesso aquele diâmetro que me separava de Adriana, pego suas mãos ainda úmidas e caminhamos juntos para nossos lugares sem dizer palavra, enquanto a roda se desfaz em absoluta incompreensão e respeitoso silêncio para o seguimento da nossa aula de teatro, que jamais acabaria.

Ecp
#euriscritor

Uma Pincelada de Quadrinho

Casa de ferreiro, espeto de pau, já dizia o velho ditado que eu cumpria à risca: nunca fora ao topo daquela montanha que ficava ao lado de onde eu morava. Já tinha ouvido falar sim, inúmeras, mas como já disse, eu erra ferreiro até então. Até o convite do vizinho que, após inúmeras tentativas, finalmente me convenceu.

Era Primavera. O clima estava ótimo, nem quente nem frio; e o amanhecer prometia calor. No banco de trás então, o vizinho, Julia, e eu. Na frente, o motorista e sua parceira de longa data, Raquel.

Como as viagens sempre começam antes de começar, tudo já tinha sido arquitetado, incluindo os mantimentos que seriam levados, as bebidas, os adornos para o desfile sempre acompanhado dos óculos de sol, o essencial gelo e as roupas de frio, caso, e frequentemente necessárias. Tudo à postos para um pretenso dia de sol regado a gente bonita, música ao vivo e uma paisagem de-matar-lá-em-cima; as descrições que eu ouvira do vizinho eram deslumbrantes, incluindo duas araras, uma azul e a outra vermelha que, segundo os relatos, encantaram quem estivera por lá, voando sobre as pessoas e arrancando aplausos.

E aplausos para nós que, pelo que entendi, milagrosamente conseguimos sair ‘mais ou menos no horário’, segundo o motorista que agora nos apressava-irritante a partirmos. Eu ainda não o conhecia, mas comecei a ver as cores.

E seguimos, a viagem é longa, três ou quatro horas, sem parada ou com, cento e vinte ou cem, ou oitenta, sempre com-radares-com-certeza, o tempo também pode ser motivo de atrito. Dito e feito de repente vem a multa, ou a suposta, o que ainda é pior, pois essa fica dentro do peito, queimando o estômago, até que chega. Aí a gente adoece de expectativa frustrada. A certeza do dinheiro que ainda será rasgado abre então a primeira querela entre o motorista e a parceira; querelinha a princípio, mas crescendo, bate-boca-de-dois, querelão; E nós ali atrás tricotando-em-três, e  em silêncio pois o homem esbravejava: “Eu sei que sou eu que estou dirigindo”, dizia à esposa enquanto batia histérico no volante. Ela, que ironicamente era quem cuidava das finanças da casa, tentava acalmá-lo, em vão, enquanto o já conhecido bufo do marido reinava quente, barulhento, triunfante. E reina conquistando quilômetros até que uma providencial parada surge no exato momento da necessidade do mijo de Julia, que em alto e bom tom manifesta sua vontade, e quebra assim aquele climão que rolava alí dentro. Lá fora o sol subia e prometia cores. Eu sonhava com o azul, mal pensava no verde.

Mijamos, e lavamos as mãos, e o rosto que ainda acordava; e olhamos no espelho, as gotas que escorriam, bom dia novamente. Um bocejo, duas pernas esticadas, ou dez, e pães de queijo, coxinhas, sucos, cafés e pingados, e nada da empada.

Justo a bendita empada. Por que é que ele tinha que escolher justo a empada, dentre tantos dando sopa na vitrine de salgados do balcão? Tinha enrolado para escolher, coxinha, assado, espetos, mas não; ele queria, e não negociava, a empada de palmito. A moça tinha dito que sim; mas se enganou e voltara com um displicente não-nas-mãos: “Acabou”, disse, mas o motorista não era homem-de-não, a não ser que dele, e vociferou. Mais que isso, constrangeu, não só a si, mas a todos, e ainda mais a ela, pobre atendente que, assustada com a fera da empada, como ficou conhecido logo após o xilique, chorou uma pia-que-pingava sem parar.

Todos nós pasmamos. Eu quase arrependido, mas pouco, pois a experiência de observar cientificamente, ou em quadrinhos, aquele momento, não tinha preço. E eu iria até o fim, com a certeza de que não seria o último episódio; assim eu pintava como Da Vinci e sorvia cada detalhe: como quando nosso amigo-no-comando resolve diluir a raiva do salgado inexistente na moça do caixa que, longe da treta da empada e não sabendo de nada, errou no troco, erro grave. Ele soca a estrutura do caixa, chama a atenção dos seguranças e nós quase acabamos presos. E eu anotando tudo.

De volta à estrada, o silêncio retoma o trono por um tempo e eu cochilo de ouvidos atentos. A estrada é sempre uma prova de amor, ou de ódio, ou de breves períodos de fúria. Assim, conto também com um olho aberto e o outro fechado e a discrição do casal ao meu lado para sentir os acontecimentos por vir-ao-volante. Já conhecíamos a tensão dos bancos da frente: um dirige e o outro também, este é o arranjo. Ela agora toca e ele fala; devem ser coisas do falo, privado, onde a gente não mete a colher, nem dá opinião, somente cala. “Vira aqui”, ele que nunca cala sugere, e ela vira. “Para!”, e ela para. “Vira para a esquerda”, e ela vira novamente e nós lá atrás sorrimos baixinho; como adolescentes que não querem ‘entregar’ e logo calamos novamente denunciados pelos olhos no retrovisor que sugerem cuidado; ou medo.

A cada curva um comando. Os verbos no imperativo ditam o tom; breque!, siga!, acelere!, tá errado!, porra!, sua burra!, e ela para totalmente: “cala a boca, Tuba!”, e ele sua. Não acostumado ao espelho do comando, primeiro espuma irado; depois sai do carro, anda uns trinta metros, olha adiante, para os lados, as vacas que pastam, a cerca, o caminho que acabou, não há mais para onde ir. Chuta as pedras, da um soco na árvore e bate na própria cabeça repetidas vezes, frustrado, como o combate inglório do vampiro que detesta sangue.

Quem era ele? indagávamos. Mas a esposa, casada há muito, teoricamente já sabia, com certeza-convivia. Ou nem mesmo ela, pois como dizem, mesmo depois de décadas, não conhecemos o parceiro, ou a parceira, pois as essências nem sempre são reveladas de todo; muito menos de pronto. De forma que a dúvida perdurou. Ele volta em direção ao carro depois de alguns minutos, ainda arfante e agora com as mãos machucadas. Eu vejo um um pouco de verde nelas; imagino uma folha esmagada, e seiva, que é um tipo de sangue. Guardo para mim.

A poucos metros do carro ele para. Estica o corpo, joga os ombros para trás, levanta o pescoço e urra debilmente num tom de voz animalesco. Um leão, talvez, gorila. Do topo dos pulmões, como dizem, o som nos alcança através de janelas fechadas e damos as mãos, nós três ali atrás, num misto-de medo, sorriso e emojis. “Ele é um emoji, pensei sorrindo, mas tememos de verdade. Ele fechou os pulsos enquanto urrava e pudemos ver as veias em seus braços empapuçarem. Seu pescoço também inchou e seu rosto ficou imediatamente vermelho, e a progressão do vermelho, que eu imaginava uma explosão, quase aconteceu; mas ele parou, olhou para nós com olhos-também vermelhos, puxou mais um pouco de ar e berrou novamente, mais alto-e-longamente, obliterando aquele nosso binômio meio-medo meio-sorriso, que agora não estampava nenhum de nós. As rugas eram de preocupação, e junto veio pandora. Estávamos dentro do carro presos dentro da caixa, supostamente protegidos.

Raquel endossava nossa esperança. “Gente, eu conheço meu marido. Podem ficar tranquilos que já passa.” Então quer dizer que isso já aconteceu? pensei, e acho que pensamos nós, pois a risada que escapou da gente ali atrás fez com que até ela ali na frente risse; e compartilhamos a ironia pelo retrovisor: sim, estamos bem tranquilos

Mas hipnotizados pelo espelho, esquecemos de olhar o para-brisa: ninguém alí na frente! Do lado-esquerdo também nada. Mas a porta dianteira-direita se abre, é ele que chega: molhado-ofegante, senta uma grande carranca, assustadora besta, tubarão assassino; Tuba, o primeiro apelido que estamparia algumas das capas dos principais jornais da cidade na segunda logo cedo. Semanas depois, a mídia nacional pintaria um quadro ainda mais colorido, para um outro nome.

Em marcha-cautela, é ela que agora toca. Ele calado pouco se move, como que recuperando-se. Dá para ouvir sua respiração acelerada e ver com nitidez as gotas de suor na nuca, que correm. Sem olhar para trás ou comentar nada, ele abre o vidro enquanto o carro segue pela estrada de terra no sentido oposto, uns cinquenta quilômetros de erro; a esposa que não tolera-sequer partícula, aguenta também muda a brisa de pó e torce para o tempo que passe. Mas ele corre mais morosa que a mente. 

Não sabíamos o que ele pensava pois não ousávamos perguntar… Ou engolíamos o momento à seco e esperávamos a bonança, que via de regra sucede a tempestade. As máximas e os ditados viram objeto de desejo nessas situações e é impossível não nos apegarmos a eles. Grudo, e do banco vejo a larga nuca aquietar-se. Os finos pelos param de vibrar e a cor dá lampejos de mudança. O retrovisor da motorista nos confirma a tendência-calmaria e Julia não perde a oportunidade: “Tudo bem, Tuba?”

Ele não olha para trás, para nós, ou Raquel que continua a dirigir também sem olhares desfocados. Ela é só para frente, sem desvios ou atalhos, só-pés-pesados que queriam chegar. E nós também. E com o tubarão agora dando sinais de que era peixe, acalmamos no barco-pescadores e nos deixamos levar pela fluidez do asfalto que agora orientava nosso rumo.

Em uma hora chegamos; ainda era cedo e a fila também amanhecia. Julia cochilara; o vizinho e eu ainda trocávamos olhares desconfiados e Raquel tentava trocar tímidas sílabas com o marido que continuava amuado. O desconforto que sentira, o peso-do-erro, a vergonha, acho que tudo isso o melindrou de certa forma. Por isso o mal humor. Mas não há fila nesse mundo que serene belzebu, quiça qualquer pessoa. Assim ele salta do carro após alguns minutos de espera-da-cancela e resolve subir à pé-o-pico. A subida é íngreme e o sol já subiu também, e ele é grande, e é pesado. Mas pode também ser muito forte e resistente, ou até mais, que é o que desconfiamos a aquela altura. Assim assistimos sua marcha morro acima até a segunda curva, quando some. “Fazer o que?” lamentamos juntos e resignados como que em uníssono dada a nossa conexão naquele momento. Mas um “E agora?” também nos ocorreu, suscitando de repente a necessidade de uma ação; mas a urgência sucumbiu rapidamente à paz, a propósito muito melhor e mais adequada ao momento geral do dia (o nosso especificamente estava na contramão das promessas), ensolarado, alegre e cheio de blues por vir. Então ficamos; tentamos deixar par-alá, meu deus.

A subida após a cancela era de uns oitocentos metros, conforme nos informou o segurança que observara admirado nosso amigo subir o caminho com tamanha intensidade. “Os carros”, disse “normalmente sobem em primeira marcha; e eu o vi correndo enquanto vinha para cá”. “Correndo?” perguntamos também em uníssono, espantados. “Meu marido nunca corre; como pode? O senhor tem certeza?”

Na dúvida disse que sim; que era um homem grande, de camisa rasgada-apertada, que corria devagar mas sem parar e que estava como a cor da mangueira, a escola de samba em aquarelas; e não ofegante daqueles que se cansam, mas dos que se transformam, que lutam para não vestir a fantasia obrigatória, a que vem e vai a bel prazer, e que cola-e—comanda quando surge, e urge ser. Como também o demônio que, quando clama para si o outro, (lhe) imputa ainda outras vozes, forças e cores.

A cancela se abre. A expectativa de quem está à nossa frente, ou atrás de nós é de festa; a nossa não é nem expectativa. É algo que flerta com as tais vozes que poderemos ouvir, as forças que desconhecemos, ou com a cores que não são nem da arara azul ou da vermelha que tanto queríamos ver. Apreensão talvez seja a palavra certa, pois na fila que se movia morro acima, éramos o elo dos sentidos buscando mais um para a história que se contava bem diante de nós, por nós, outrora coadjuvantes, agora detetives desvendando um mistério. Para onde ele tinha ido? “Cadê o meu marido? O que está acontecendo com ele?” chorava Raquel que nem mais dirigia. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam, suas unhas diminuíam de tamanho. Os metros passavam lentos e ela não se aguentava. Então puxou o freio de mão e desceu do carro. Olhou para nós um longo olhar, e com os seus de detetive começou a seguir pegadas. E nós ficamos para trás. O casal ao meu lado pulou para frente e Julia assumiu o comando do carro. Pudemos assim acompanhar os primeiros movimentos de Raquel que pisava firme enquanto observava todos os detalhes da trilha que já tinha identificado, e seguia: ele definitivamente tinha passado por lá. 

Ficamos para trás. Ela seguiu adiante por uma boa centena de metros à frente, percurso que demoramos uns dez minutos para percorrer, quando a vimos esperando por nós. Ela pedia para a gente correr e apontava frenética para o cantinho da estrada mostrando alguma coisa. Fomos chegando perto, mais perto, entendemos uma pegada. “Sim, uma pegada; mas vejam!”. A gente não via. “Vejam o tamanho dessa pegada”. Nós vimos enquanto ela entrava no carro e nós seguimos; seguíamos as pegadas que iam ficando cada vez mas óbvias, mas claras. E entendemos que não era uma questão de nitidez, mas de tamanho. Cresciam rapidamente até que viraram pés descalços, mas também crescendo. Achamos retalhos de calças, meias e também botões de camisa; por fim os óculos de sol, essencial adereço para a festa, agora grosseiramente esmagado no chão e um um caco da lente manchado de tinta. “Tinta?”

Mas tinta não pinga-do-nada, de onde é que vinha? Peguei o caco, molhei o dedo, esfreguei um no outro, entendi a textura. Pouco viscosa.

Alguns metros acima achamos uma outra gota, talvez maior, pois escorria para dentro da pegada, marcada em solo seco, difícil de cavar. Ainda assim cada pegada tinha uma profundidade aumentada; e as marcas iam se espaçando, e as gotas sumindo, como se aquela transformação que a gente via nos desenhos da televisão de tubo-anos-oitenta estivesse acontecendo exatamente alí, bem na nossa cara.

“Isso é sangue”, digo a Raquel enquanto examino a última poça que veríamos naquele dia, e ela finalmente esbugalha os olhos. Simplesmente não quer acreditar, “sangue é vermelho!” ela grita. Mas ao olhar para Julia e o vizinho, condescendentes comigo, baixa a cabeça (e o tempo passa, como se ela estivesse vendo o passado e o futuro ao mesmo tempo; contemplando o inevitável e também a única possibilidade). Vê a poça, se abaixa e leva as duas mãos àquele líquido cor de pistache. Faz uma concha, olha para nós e resolve validar pelo palato o assombro daquela constatação. Então leva as duas mãos juntas à boca e bebe-babando aquele suposto elixir como se fosse um sorvete que escorre da boca da criança na praia, cotovelos abaixo, barriga e o nascer de um novo cordão umbilical. Um vínculo ‘a-la’ as novelas gráficas mais famosas, mas para nós muito real, pois vimos. Vimos a mulher crescer, Raquel enfurecer, esverdear, pisar. Vimos a mesma pegada, e uma lágrima verde que escorria pelo seu rosto enquanto olhava para nós.

Ela cai e pinga no chão. E as araras voam sob aplausos.

ECp
#euriscritor

Uma Machadada na Cabeça

“Como é que foi?”

“Fui convidado pela Estela. Na verdade, pelo marido dela, que já vai lá faz tempo. Ele já tinha me convidado várias vezes, inclusive. Sempre que a gente se encontra ele me convida. Um dia não teve jeito. Não sei nem por que ao certo, mas ele falava tão bem que resolvi um dia ir.”

‘Eu tenho um pouco de medo.’

“Sabe que não precisa, viu. Quando você chega lá já percebe na hora que o ambiente é seguro. Um sítio eu acho. Um lugar aberto, bonito. Uma casa com uma varanda com umas mesas espalhadas e uma quantidade de gente em volta, sei lá, umas quarenta, cinquenta, trinta, por aí. Não sei ao certo. Tem comida nessas mesas, mas ninguém pode comer nada. Ninguém come, pelo menos. Não me lembro direito das orientações que me passaram, se podia comer antes ou não, mas fiquei com vontade. Mas acho que não pôde não.”

‘Então vocês ficaram ali, esquentando os motores?’

“Não sei se o termo certo é esse, mas dá para dizer que sim. Foi um momento de, uma espécie de confraternização antes do evento principal. Não é todo dia que eles se encontram. E tinha também a questão dos iniciantes. Era a primeira vez de um monte de gente, incluindo a minha pessoa aqui, a propósito. A gente era uns quinze, vinte. Mas tinha cinquenta pra mais pessoas lá. Já falei né?”

‘Tinha música, dança? Ouvi dizer que em alguns desses lugares, você dança, e fica lá, viajando.’

“Nesse não. Nada disso. Muito pelo contrário. Imagina um salão. Todos fomos para esse salão. Ou melhor, um galpão, sabe; de uma fazenda. Tinha um monte de cadeiras por lá, todas apontando para o mesmo lado. A gente escolhia uma e sentava. Uma ao lado da outra. Do meu lado, por exemplo, tinha umas oito cadeiras, se me lembro bem. E em cima dessa cadeiras, cobertores. Eu não entendi muito bem, mas lembro que já estava frio. Friozinho. Eu estava agasalhado inclusive. O amigo que me levou disse para eu levar agasalhos. A propósito, isso é uma coisa interessante: os iniciantes só podem ir lá acompanhados. É praticamente proibido ir sozinho. Acho que nem dá, porque a gente não conhece e é um grupo bem fechado, então. Do que adianta querer ir sozinho. Mas no final eu até achei uma boa viu.”

‘E seu amigo, ficou com você?’

“Não muito. Mas eu acho que eu quis me afastar também sabe. Queria curtir sozinho, se é que ia curtir mesmo.”

‘Mas você já estava com dúvida? A coisa não tinha nem começado e você já cheio de dúvida?’

“Pois é. Não cheio de dúvida não, mas alguma coisa tava me incomodando, sabe. Achei muito estranho, todos muito felizes e mostrando muitos dentes.”

‘Todo mundo feliz e muito sorridente?’

“E algumas pessoas de uniforme. Ou um tipo-de-uniforme. Calças verdes ou brancas, ou vice versa, não sei. Só tenho certeza dos sapatos brancos e aquilo me deixou meio, sabe com a pulga atrás da orelha? E eram elas que ficavam na parte de um altar; tinha um púlpito lá na frente e uma pessoa que ficava lá falando. Ele também tinha os sapatos brancos. Um culto, isso! Me veio a idéia de um culto e aí eu não gostei. Parecia que eu estava numa igreja. De uma hora para outra, no mesmo lugar, fui de uma chácara para uma igreja. Eu não gosto de igrejas.”

‘As raízes do povo.’

“Ironias da vida, não! E eu lá, pronto para viajar para o amazonas.”

E ele foi. Não necessariamente para o Amazonas, mas para qualquer outro lugar, “indecifrável” nas palavras dele mesmo. E escuro. Ele definitivamente havia estado num lugar espesso; o obscuro parece que tem essa cor, e era lá que habitava agora; quando andava, ia tirando objetos escuros da sua frente. Eles flutuavam e ele os tirava com as mãos em frente ao rosto, à frente. Não sabia exatamente o que era. 

Caminhava. Andava sobre-a-sombra, uma sensação estranha. As paredes ao lado, pois a cerração era tanta que ele não conseguia ver o horizonte, estavam próximas. O cerco se fechava, como se estivesse no ‘Quarto do Pânico’,  Jodie Foster que o salve. Mas não, não tinha para onde ir, senão que para frente, era essa a viagem. Mas quer quisesse luz, o que via agora lembrava mais a noite, os becos, aqueles latões de lixo caídos no chão esparramando alienígenas. Sim, é o que viram depois de mortos.

‘Estou no lixo’, pensava. Mas então, do ralo foi para d’entro d’água, e não era aquela água que vem à mente quando se fala dela. Nem clara, nem a do mar que espera o sol, ou a do rio que desliza em serpentes, nem a do mergulhador, ou dos tubarões do discovery channel, mas a do Ganges, do Rio Tietê, do Citarium, da Bacia do Riachuelo*, do mortífero Karachay. Todas elas misturadas era lá que ele estava, nadando sem máscara.

Subiu para respirar e se viu no barracão, um suspiro de alívio! Desconfiava da verdade, mas percebendo nos semblantes ao lado, serenidade, tranquilizou-se apesar da lucidez que à cada escurecer era posta à prova. Sentia-se pleno, mas sonolento. Tinha os pés no chão, mas era partícula; e foi soprada.

Acabaram os pigmentos. Não havia luz, nem todas as cores. O tom era das trevas e ele embarcou novamente acompanhando o ritmo do silêncio, que só era quebrado quando as músicas religiosas que tocavam no galpão capturavam seu negro e induzido devaneio. Mas a profundidade o atría-sem-querer. Fechou-se à música sacra, deixou-se levar e fluiu esgoto adentro. 

Algumas coisas boiavam como nos rios, mas andavam menos; eram mais lentas. O visco não era água, ou era-há-muito tempo, pois aquela nojice mais parecia com o óleo de motor que sai aos pedaços de qualquer tanque velho. Era por ali que ele andava. Mas quando abria os olhos, o que via era um monte de gente com cobertores no colo e dormindo com ares tranquilos. E ninguém abria os olhos para compartilhar com ele sua aflição. Portanto fechou os seus novamente e deixou que aquela correnteza lenta e viscosa o levasse, sufocado-de-ansia, ao formigueiro.

Elas subiam por suas pernas ininterruptamente, e infinitamente como em looping. Ele olhava de cima para baixo apavorado e via aquela revolução de formigas, suas pernas se tornando negras-em-movimento fazendo coçar. Ele sentia a coça, mas seus braços estavam duros, como que paralisados por venenos de milhões de perninhas. Até que foi coberto por elas, e levado embora como aquela folha carregada por um única operária.  O fim da linha não havia. Estava acorrentado a outros, presos-por-correntes, caminhando-cabisbaixo, toldado por ‘pés direitos’  ainda mais baixos que o faziam rastejar junto a insetos que já conheciam a caverna para onde fora levado em suspensão.

Ele queria sair de lá. “Meu, eu tenho que sair daqui de qualquer jeito!” ele repetia para si mesmo sem nenhum resultado prático, porque estava em vigília, quele estado de sonolência supostamente controlada que engana. Disfarça o que se acha naquilo que deveria ser, e brinca-se de esconde-esconde sem nunca de verdade se achar. 

A música cessa lentamente.
As luzes são acesas e se percebe um movimento. As pessoas ao redor abrem os olhos, mechem os cobertores, espreguiçam. Abrem as sonolentas bocas e bocejam gostoso, sem pressa. Se esticam novamente enquanto o viajante das negras profundezas tenta fazer o mesmo, mas sem nenhum prazer. Simplesmente estica o corpo duro, congelado, frio-querendo-quebrar e se encolhe num lento e temporário despertar. As luzes que se acendem ajudam, mas seus tristes olhos opacos acusam. “Está tudo bem”? alguém pergunta, e ele calmamente serena. 

Do púlpito vem algumas informações e ele as dispensa rapidamente. Continua semi; mas percebe que algumas pessoas se levantam. E começam a formar filas. E todos fazem o mesmo enquanto aquele lá à frente diz que quem estivesse bem, poderia, verbo poder, continuar. ‘O que é o ‘gosto de terra’ para quem já está na movediça?’ ele sorri, se levanta e segue a manada. O elixir do santo logo ali à frente para mais uma dose. “Por que?” se pergunta, e segue adiante que ‘sou guloso’, foi a resposta. Mas a razão plena já não era mais sua aliada, e ele sucumbe às maravilhas do grande estado do norte. Devora lentamente aquela infusão, e volta para seu lugar, ou para onde quer que depois-fosse. 

A areia se materializa. Ele tinha pensado na terra, mas veio fina-como-de-praia e ele estava se afogando. Só sobravam a boca e as narinas para fora quando ele viu logo acima da sua cabeça alguns cipós quase-ao-alcance. “Talvez se eu conseguir erguer meu tronco”, e o esforço foi hercúleo, mas quando os alcançou eram cobras peçonhentas que picavam seu braço e ao mesmo tempo o tiravam da lama. Um doce amargo que virou putrefação em questão de segundos. Estava a salvo, mas morrendo.

Precisava de um ar. Foi ao banheiro. Outros já o haviam feito e resolveu fazer o mesmo. Abriu e fechou a porta de vidro deixando todo mundo lá dentro e caminhou através de um jardim para uma outra casa onde supostamente acharia o toalete. Não importava, pois o que ele queria era existir. Achou-usou e aproveitou para se olhar no espelho. Estava lá, em carne e osso, respirando, limpo. Não havia nadado no esgoto ou sido picado por cobras peçonhentas. Simplesmente dormiu e teve um sonho ruim, concluiu enquanto voltava lentamente para o gramado, contemplando umas grandes árvores que circundavam o ambiente. Se mostravam majestosas, iluminadas pela lua, e verdes em toda sua infinita, variância; e todos os tons estavam vindo às pupilas dilatadas quando foi surpreendido por um dos porteiro-sacerdotes que o colocou de volta-porta-adentro. Ressentido-sucumbiu, pois a viagem lá de fora prometia cores, enquanto a de dentro, mais negritude, ele previa. E quando se sentou e novamente desceu as pálpebras, eis que Nostradamus. A jornada não tinha acabado e ainda faltavam pelos menos sessenta minutos para a aterrisagem. Muito tempo para o são, para ficar ali sentado sem fazer nada. Mas para o viajante que se entrega, mesmo que para o desconhecido, os ganhos podem ser ainda maiores. O trem perdido na estação, o prato de molusco pedido às escuras, o guia-que-engana, tudo de certa forma soma, era uma crença que nenhuma raiz mística do norte corromperia.

Aprenderia com o esgoto, com os rios poluídos, com os becos sem saída, decidiu. Cobriu-se para a reta final do desatino e pulou de cabeça para dentro daquela movediça que logo antes o sugava. Mas dessa vez ele ondulou por debaixo da areia e encontrou água. Suja ainda, mas líquida, oposta ao denso caldo de nanquim dos ápices anteriores. A tinta se diluíra um pouco e ele nadava numa espécie de aquarela monocromática; escorria junto à tinta enquanto transitava de um cinza ao outro. Tinha se transformado na serpente que o picara e que agora rastejava naquela matiz aquosa usando seu corpo como pincel, espalhando curvas que fluíam ao sabor da vigília. Pintava um quadro impressionista e invocava a luz,  o personagem principal. Mas os atores daquela história ainda assombravam e apagavam as velas que ele queria acesas. Dá-se uma luta intensa entre serpentes e fantasmas e do confronto pingam gotas coloridas que o despertam.

Ao seu lado as pessoas começam a se mexer. Olhos são abertos e cobertas são deixadas de lado. Ninguém se levanta, como se nem conseguissem. Ou nem quisessem, pois seu semblante é de paz, bem estar e glória, melhor ficar por lá. Espreguiçam e sorriem. Inspiram e expiram gratidão, que a noite foi ótima.

A sequência do seu despertar, pelo contrário, é um silêncio quase constrangedor. Enquanto todos dizem que ‘foi bom demais’, ele suprime de dizer tudo o que vivera. Mas quando questionado diretamente sobre como tinha sido sua experiência, disse que um dia escreveria um texto sobre isso. 

Ainda não tinha título.

Ecp
#euriscritor

 

*Bacia do rio argentino Matanza-Riachuelo, considerado por especialistas como um dos dez locais mais poluídos do mundo, assim como todos os outros rios citados na passagem: Ganges (Índia), Tietê (Brasil), Citarium (Indonésia), Karachay (Rússia).

A Vingança do Zigoto

De tanto que pisou em ovos, acabou sem sapatos.

Mas sobraram os fios que, agora cadarços amarelos, serviriam a um outro propósito.

Descalço e com os pés em carne viva, voltou os doze quilômetros a pé para casa e encontrou papai largado no sofá com uma cerveja semi morta no colo, bocejando aquele bafo de galo velho e imprestável. Não aguentava mais! Nem mamãe, que nesse momento voltava chorosa da cozinha onde levara um supetão por simplesmente ter errado o ponto do macarrão. Foi a gota d’água; a farinha do bolo, a cereja: um desejo que era chocado há anos.

Ela abraça a filho por trás e de mãos juntas esticam aquela fibra que sempre faltara.

eCP
#euriscritor

Nascer, Gozar, Criar

“Outro dia me disseram que nessa vida temos que exercer a liberdade, que sem ela somos nada, ou quase: ’eu-robô’, copião, tecla tecla e a marchinha sem tesão, um após o outro enfileirados, terno e gravata ou terninho, sainha, pantalona ou bermudão, o que quer da moda seja, e andamos apressados, uma verdadeira massa indistinta e embolotada, passando pelo moedor com destino definido, uma morte reciclada: nasce um, nasce outro, e na pastelaria da vida moderna somos fritos em padrão para um selfie bem armado, copiado, filtrado, sorridente, sempre sorridentes na moldura do telão.”

“Não se cria nada, só masturbação fastidiosa e passatempo mascarado numa rede sem peixe. Somos nós os pescados-net de olhos vidrados madrugadas adentro e o salmão na geladeira, frozen, esperando o meu descongelar.”

“Acorda menino, diz ela, loira, e o louro e os pavões saçaricando em palmas que te quero sempre mais… e holofotes, o gozo depois do orto, o jorro da vida que agora em capsulas de colágeno e cirurgias de mamas e xoxotas perpetuam o finito numa ode ao perfeito ‘nós-androide’, que a propósito não mais ejaculamos.

“E já deixamos de nascer, pois esquecemos de criar.”

“O espermatozóide está deprê; se perde em vôos sem destino como um pássaro sem asas, ou acaba congelado num laboratório de futuros humanóides, os novos replicantes. E assim, pela ereção condicionada, aguarda o broxante lançamento: quatro, três, dois, um, pingou. E como uma rolha de champanhe sem pressão, uma flecha de um arco sem tensão, sem potencia cai na esteira de um Ford preto e perpetua seu alelo infinitamente duplicado a bel-prazer do seu patrão.”

“Com os bolsos cheios de dinheiro e mil sacolas, renasce, agora sim goza e compra um quadro. Pendura na sala, arte. Regozija como se pintor o fosse e de olhos fechados contempla com orgulho a lembrança do oportuno lance feito numa casa de leilão: dou-lhe uma, dou-lhe duas, ‘é meu’.
Dou-lhe três, quatro, dou-lhe cinco, mil penetrações que como mágica viram estátuas, ferraris e pianos de caudas, que elas nunca são suficientes para aquele gerador dos deleites em cadeia.”

‘Mas e a liberdade” – alguém perguntou – “como é que fica nesse lago de mil repetições?’

“Temos que exercê-la. É vontade própria, se conquista e se pratica; se no ócio, ela morre, hiberna como os velhos ursos e persevera no hábito da inação. É muito fácil sucumbir à indolência.”

‘Mas como, se já nasci, gozei, e vivo?’

“Crie, cidadão. Use as mãos, pegue no pincel, escreva uma linha, duas, um milhão de linhas desconexas, não importa; observe o mundo ao seu redor, olhe as árvores, contemple sua cor; sei que parece sempre a mesma, mas não. Observe por alguns minutos; sente à frente dela, na calçada e veja. Fixe o olhar no caule, vá subindo lentamente às folhas e assista seu tremular, sinta o vento. Pode ser até que veja um pássaro, um macaquinho, ouça um miau ou a voz de uma cigarra. Fique lá, não vá embora, não saia correndo, divague, feche os olhos. Atente.”

“E todo esse processo durou apenas alguns minutos.”

“Agora pegue toda essa fresca memória e leve junto com você. Mas antes, passe numa papelaria e se encha de lápis de cor, giz, pinceis e tintas. Pegue um papel em casa e recorde, revisite a árvore agora melhorada: é mais alta, mais cheirosa e com verdes infinitos; respire pela tinta o sabor de cada cor e sinta sua fotossíntese a cada inspiração. Exale, profundamente. Sorria que seus dedos estão sujos. E no espelho, no banheiro onde habita a pia da higiene, você vê agora lábios verdes, um nariz amarelo e bochechas de magenta. Uma gargalhada. Foi pintar uma árvore e acabou no picadeiro.”

“Mas criou, entende? Produziu algo a partir das próprias mãos; e da própria observação, da própria idéia, da alma, da sua, da própria, da própria, repito, da apropriação dos exclusivos movimentos sem nenhuma guia ou nenhum manual do passo a passo. Na pele de um palhaço recém nascido brotou um pintor a lá Picasso, quem sabe.
E foi só o seu primeiro, sentiu?”

‘Enquanto falava, tentei imaginar o que disse, a árvore e tal; e eu pintando, ou tentando rabiscar alguma coisa, colorir de alguma forma o que me fez fantasiar.’

“Sim. É esse um dos exercícios libertários; aqueles que induzem a criar. E a partir daí, é a mão na massa, ou no barro, na guitarra ou na gaita de fole, nos turcos fios que tecem, na máquina de escrever, na caneta de nanquim, na areia dos formatos arbitrários, na água que absorve, empapa e transforma, inventa.”

“E são dessas mãos compromissadas com idéias que a esteira para, que a produção em série oxida para dar a ela, a ferrugem, uma outra acepção, porosas partículas que se misturadas ao sabor do criador, lubrificam o impossível, e engrenam o motor da fantasia.”

“Fadas e monstros, dragões cuspindo fogo, homenzinhos antenados e mortais vespas de cristal; unicórnios de dois chifres e vacas submarinas na festa do peão de Atlântida, todos agora personagens de um novo olhar, inventivo, ilimitado, livre. Que vê além das estrelas, por trás do mundo, abaixo do oceano, dentro do fogo, através do gozo primigênio e dá vazão a novos rendimentos intelectuais.”

“Assim, renascemos novamente, que a morte não me pega mais. Ou pega, mas não cesso de existir pois a arte é legado, crio; e dessa forma atravesso gerações, dedilhando, pintando, escrevendo, esparramando e misturando receitas, cores e sabores, dançando, cantando, tamborilando novas composições; pendurado novos quadros, que não os de leilão.”

“A moldura se rompeu e a ave de lá fugiu.
Está naquela árvore que você mesmo desenhou.”

 

Ecp

#euriscritor

UTOPIA

Não queria que assim fosse, que sua avó fosse tão brava, ou a mãe tão enjoada, que a tia falasse tanto, o primo hesitante. O outro um avarento, que fosse só pão duro, amolecido.
Não queria que o mercado fosse tão caro, que a fruta tão madura, que o peixe tão fedido, e a banana, amarela. Nem que o suco engarrafado, o pão fatiado, ou a couve ensacada; e o coco, na garrafa.

Se frustrava com os carros barulhentos, as ruas estragadas, os semáforos quebrados e a calçada sem nível, parede descascada e o muro de tijolo baiano, furado.

Que tristeza o mendigo, o pedinte, o cadeirante deslocado, a vendedoras de balinhas, o flanelinha; não queria pagar aluguel de rua.
Não queria, oras, pagar aluguel.
Nunca desejou a falta de espaço, nem que o homem precisasse de outro lugar; ou o espaço, que aqui já tá lotado. Nunca quis a viagem interplanetária, outras luas, outros sóis. 

Nunca, nunca quis foguetes.
E nem armas, granadas ou espingardas, minas, terrestres ou putas… muito menos balas, muito menos as perdidas; mas também as de chupar, nunca quis as cáries, os implantes, canais ou dentaduras, que odeia o barulhinho do dentista. Assim como o chiclete, o cego que os masca no escuro, que se enxergasse no espelho e o cuspisse, não no chão; que também não da conta do nojo, do esgoto a céu aberto, da sujeira, do filho da puta que joga a bituca do cigarro pelo vidro do busão, Não!
Mil vezes não à fumaça, pois não suporta o escapamento, pra que servem afinal, Poluição direcionada…?

Nunca esteve afim de discussão, a propósito, e nem de debater o sexo dos anjos; política então, nunca quis burocracia, cargos, vantagem, malandragem-putaria, nunca quis a casa da mãe Joana, nem viver nem frequentar, visitar e tampouco por os pés.
Que nunca quis também sujá-los de barro, Mariana, Brumadinho, quanta pena, piedade, que mazela, nunca quis que tanta gente carregasse tanto fardo.
Estou farto.

Não queria nada disso, mas disso tudo tenho, o tempo todo, toda hora sem demora, utopicamente suponho viver.

Pico a minha mente com uma droga chamada sonho, que de dose em dose me dissolve em profecias exclusivas; inalcançáveis, perenes que se acabam depois do primeiro baque. Depois do primeiro tapa, do primeiro trago a fumaça se desfaz, utópica que é, e engana.
Engano a mim, a ele, e junto anestesia, que é isso a utopia.

eCp
#euriscritor

Magrela

Outro dia comeu uma tartaruga. 

No outro um avestruz. Anteontem Zebra, uma listra atrás da outra.
Ora Mico Leão, Ariranha e até Urubu, bastava andar, correr, rastejar ou até nadar, vide a fase dos pinguins. 

Ora em pé, deitado ou de ladinho, quem ditava a pose era o bichinho, ou bichão, como foi com o leão, o  Hipopótamo… ou a girafa; e neste caso, que trabalho pra trepar o pescoção. Que manobra, um balé, malabarismo-ninfo nas alturas, escada e até equipamento de segurança, um perigo de tesão.

Pois que resultou em amor, que o difícil sempre vence; o impossível da savana agora é gozo, um deleite animal e rastejo ao pés daquela elegância que pra mim não mais selvagem. Humana, Veridiana segurando taças, Champagne para celebrar natais, eu e ela e meu padrinho elefante, todos dançando no salão, ela e eu rodopiando e os outros só suspiro; eu também, afortunado libertino.

Há quem empaque com outros tipos, insetos, peixes… até gente, dita gostosa e tal, mas não! Nada se compara aos trejeitos da magrela. Seu olhar, sua mordidinha, seu jeitinho de dormir… como desperta, espreguiça, estica aquelas pernas e levanta com tesão…
Tive que dar meus pulos, é claro (alguns bem altos) que essa relação inter-espécie tem lá os seus percalços, seus segredos. Por exemplo, “beijo logo cedo só biquinho” ela me disse, “que “esse bafo de homem é de matar”.

Fungar no cangote pode, mas demora; ela adora e se treme toda. Digo, tremedeira, vibrações mesmo, um frisson, que pode ser um  grande problema pois nesses momentos sempre esqueço o capacete; e queda com tesão normalmente não combina.

Sobre as posições invertidas, também tivemos que conversar. Tentamos um 6.669 em pé, mas não rolou; mudamos para 69.009 deitado e aí fluiu; como um rego aberto no meio do deserto, um afluente que por pouco não me afoga de prazer, literalmente. 

Não que eu nunca tenha comido melado, mas a dança desse tipo de  acasalamento nutre uma performance jamais sequer imaginada. Tanto dela quanto minha. 

E assim, Veridiana se lambuzava com as minha acrobacias sexuais: “nunca tinha visto um humano com tamanho ímpeto, voraz,” dizia.

Me jantava com tamanho deleite que depois de um tempo passei a pensar que era eu também um mamífero africano de 4 metros. Passei a me alimentar de frutas no topo das árvores e a dormir de pé. Andava em bando e copulava ao sabor do desejo da minha fêmea sem dar bola à concorrência; eu era demasiado exótico para qualquer afrontamento.

Então, dia após dia, e na rotina do reino animal (que jamais concebeu métodos contraceptivos), concebemos; parimos meia dúzia de seres ainda indefinidos, mais altos que baixos, menos fortes que magros, e altos. Mestiços, em linguagem de homem; e estranhos.

Prontos para habitar dois mundos.

Líquidos

Uma das melhores coisas de se envelhecer junto, e de pertinho, é não ver a idade passar. O tempo parece ser menos cruel com aqueles que convivem, sejam amigos, namorados, marido e mulher. Qualquer que seja a configuração, quando nutrida constantemente, parece enganar a passagem dos dias, anuviando rugas, pintando cabelos e escondendo barrigas. A gente vê a mudança-na-gente, mas não vê no outro, pois o tempo passou para ambos, e essa espécie de espelho da idade funciona sempre que olhamos para as pessoas que estão perto de nós, próximas.

Quando o envelhecer acontece em polos opostos, a história pode ser bem diferente. Com o tempo, chega a memória e a distância que, juntas e  eternas amantes, criam outras narrativas.

A que começa quando o telefone toca já é, por si só inusitada. Quem, nos dias de hoje, telefona para alguém? Joyce. Sim, a Joyce era desse tipo, ousada-que-ligava. Nada de mensagens de texto e similares. Ela queria falar, chamava. Se o outro lado não quisesse, que desligasse. Mas o Beto não desligou, pelo contrário: “Alô”.

“Beto, tudo bem? Aqui é a Joyce, da faculdade, lembra?”

Fazia uns 20 anos que não se sabiam. Cada um tinha ido para um lado depois da Educação Física, e o tempo foi esfumaçando aquelas promessas de memória sempre vivas. Não que as lembranças fossem verdadeiramente reais, pois ele nunca a tocara de fato; nem sequer a beijara. Mas nutrira uma intensa história. Ele fechava os olhos e via carícias, abraços, e depois sem roupa. Os via juntos, beijando-se longos beijos e amando-se sem pressa. Via um casal que acordava e não saía da cama até o meio dia. Depois via o mesmo casal já nos dias rotineiros de um relacionamento de longo prazo. Viu também filhos, depois o ninho vazio, mãos dadas na velhice, e agora eis que o telefone toca-e-traz de volta à superfície a memória das suposições; do que poderia ter sido e que agora, de repente pode. Ah, a Caixa de Pandora.

É lógico que ele lembra-nunca-esqueceu. Assim são as recusas, as rejeições, por vezes nos cravam estacas.

“Joyce, da turma de Oitenta e Três; é você mesmo? Ele já sabia. A voz também fora cravada, mas como o tempo muda o timbre das coisas, veio essa sugestão de dúvida. Ela sorri do outro lado.

“Não acredito!”, ele continua com a euforia contida, mas acredita até demais, e aquelas fotos que mantivera emolduradas na memória são reveladas instantaneamente e se tornam nítidas: aquela da festa do Bicho do primeiro ano, a da Fantasia, ela a Pedrita do segundo ano, as inúmeras fotos do terceiro quando ela brilhara enquanto-tudo, e as que queria inexistentes: as do quarto ano, quando ela namorou, namorou e namorou, outros.

E casou e foi embora.

Ele foi embora também, e depois casou; assim são os assuntos de faculdade, todos juntos um dia, no seguinte separados; esperançosos de um dia-o-retorno, mas que via de regra nunca mais. E ele assimilou: riscou a moça do mapa com sucesso e desenhou uma outra história que se contou por doze anos de casado-com-filhos quando eventualmente acabou. A página agora estava branca novamente aguardando novos pigmentos. 

Do outro lado da linha, Joyce o arco íris.

‘Onde será que estava o  pote?’ ele pondera.

“Pode acreditar, sou eu mesma. Também reconheci a sua voz: continua rouca. Escuta, estou fazendo uma grande viagem de férias pelo País e logo vou chegar ao Rio. Estou me encontrando com vários colegas da Faculdade, mais ou menos uma pessoa por estado. Você mora no Rio, né? Ou morava?

Em outras palavras, o pote de ouro estava logo alí.

“Joyce, que surpresa. E depois de vinte anos. E você está vindo pro Rio!”

“Eu sei que é de supetão, Beto, me desculpa, mas essas coisas tem que ser desse jeito mesmo. Se fosse planejar, não dava certo, né!?

‘Definitivamente não daria’, afirma para si mesmo. Mas como fora pego de surpresa, ‘vai dar’, promete para si mesmo.

“Quando exatamente você chega, Joyce?”

A semana que se seguiu foi paralisante. E eletrizante ao mesmo tempo. Uma mistura de sentimentos e emoções. Ora estava feliz, ora não sabia o que fazer. Pensava no acaso e depois nas coisas premeditadas. Pensou no destino e depois amaldiçoou o Espirito Santo. Saiu para correr e em seguida foi à sauna. Queria suar inquietações, mas escutava repetidamente as poucas palavras que trocara com ela; e buscava interpretações: ‘tinha vários cariocas na época da faculdade. Por que que escolheu justo a mim para visitar?’

Sem respostas então, foi às compras. Nada a ver com o encontro, mas só por que precisava mesmo de uma calça nova, algumas camisas e um tênis que não fosse só para o esporte. O longo cabelo também não estava precisando de um trato, assim como o carro que, apesar de limpo, ganhou uma cera extra. A casa, será que entraremos em casa? pensou. Por isso trocou também a cama. Comprou lençóis quatrocentos fios e espantou as aranhas da adega de vinhos com novas ampolas de Cabernet, e taças.

Fez dieta, quem diria, fez dieta. Olhou no espelho até de lado e aparou aquelas penugens brancas que insistiam em brotar, mas amanhã não. “Amanhã tenho que estar perfeito”, declarou para aquela imagem no banheiro que jamais iria discordar dele. 

Do lado dela, o espelho também falou. E ela se maquiou. Arregalou os olhos e sorriu grande. Abriu a boca, exalou bloqueando o reflexo. Se afastou, empinou o queixo, olhou olhos-nos-olhos. Ficou séria-fez-careta. Apagou a luz. Estava pronta.

Mas ainda faltavam dois dias para sua partida-expectativa; mãe de todas as angústias, aflições, frustrações. Nascem cruéis e ferem; dissimulam e golpeiam por trás, torcendo a faca assim que entra. Ou matam até mesmo pela frente, um tiro a queima rosto no meio da testa espalhando miolos.

Mas nada disso adianta ou importa; nascemos com elas, brigamos, perdemos e elas nascem de novo como um velho e fodido fígado que insiste em se regenerar. Na expectativa de não errarmos novamente, revestimos o engano e voltamos com um novo e renovado entusiasmo: ‘dessa vez vai ser diferente’ é o que ambos esperam.

Ele rói as unhas. Ela arranca cutículas. Ele tem se olhado bastante no espelho; ela foi ao cabeleireiro novamente. Ele sua na testa, ela nas mãos. Ninguém sabe do outro. Ele é avesso às redes, ela-mora-nelas, por isso o desconhecido vira um imã, e o Rio de Janeiro, sendo polo, amplifica a atração disfarçando aquele afogo.

A urgência entra em cena e os dias se alongam. Os minutos viram horas, mas só por alguns dias, e quando chega, ela está lá no aeroporto embarcando. E ele também, mas esperando, apesar das horas que ela ainda demoraria para chegar. Checa os horários, olha na tela do aeroporto, confere com as mocinhas, anda pra lá e pra cá, toma mil cafés, chega novamente para ver o placar os vôos, esquece o o Fla-Flu que estava passando ao lado. Só tinhas olhos para a tela que fora pintada em mil novecentos e oitenta e três. Será que tinha desbotado? ele não cansava de pensar. Fizera mil e um ajustes mentais, misturou o virtual com o real, o passado com o presente, mas a apreensão se mantinha no ar, turbulenta.

Eis que chega Joyce. Eis que ele a reconhece de cara. E ela a ele de rosto. ‘Como ele ficou lindo’ ela pensa enquanto sorri. ‘Parabéns pela decisão Joyce’, se congratula enquanto ele se levanta, chega perto e a abraça, um aperto de mais de 20 anos. Ela o beija uma vez conforme dita-o-rito do seu lado, enquanto ele busca o segundo, tradição fluminense que ele fazia questão de perpetuar. O segundo prevalece, é o beijinho-quebra-gelos, e é sempre seguido de sorrisos.

Vão assim até o carro, onde ele gentilmente abre a porta para ela. Mas um ponto positivo, é o Betinho da Facul virando Beto. Ela se solta e ele também, e quando partem já desfrutam de um vínculo que queria ser, formando-se. A música que ele coloca ajuda ainda mais, e os pés descalços dela sobre o painel corroboram.

“Você se incomoda de eu fumar?” pergunta ela já abrindo a janela. Ele só-sorri lembrando que ela não mudara-em-nada. As pessoas não mudam, era sua crença; portanto desfruta dessa re-vivência de um passado travestido de moderno alternativo, que ela estava toda tatuada, cheia de piercings, batom vermelho bem escuro, longas tranças no cabelo e dreads com anéis de caveira. O pé que estava no console também ostentava anéis e tinha vindo de chinelo; voando.

“Amo essa música”, ela diz enquanto Prince-toca-Kiss, e fecha os olhos. Ele troca marchas enquanto acelera e numa das curvas as mãos se tocam-no-câmbio. A força centrífuga a traz bem para perto dele e faz-se cola.

No primeiro semáforo se engalfinham. O abraço é de mil braços e se apertam como sapos que se grudam e não soltam. O beijo é puro movimento, um vórtice de fogo em bocas molhadas impossíveis de apagar; mas a língua dela é enorme, uma jibóia e o engolfa. Ele nada e tenta respirar, mas ela é o próprio fluxo da água em movimento, uma espiral sufocante que o deixa atordoado, lânguido. E como um cachorro carente então, da sequência com uma enxurrada de lambidas que o ensopa totalmente. No pescoço, no peito, boca e bochechas, subindo pelos olhos, sobrancelha e testa, seu cabelo agora pinga e os ouvidos estão entupidos.
‘Não da mais’, ele pensa; ‘que horror’, e tenta se desvencilhar educadamente daquela melada fusão, empurrando-a para trás.

Não adianta, ela é persistente e avança agora como um lobo instigado pelo sangue do semáforo, cinco, quatro, três, dois, ele conta mentalmente, verde. E parte insensato rumo à festa se enxugando parcialmente com os braços, tentando disfarçar o desconforto daquele ímpeto. Ele suspeitava da volúpia da Joyce, mas o ataque o deixara atordoado, e pensativo: será esse o motivo dos inúmeros namorados? Nenhum eternamente? 

Resolve investigar mais a fundo e deixa o carro fluir. 

As vezes a melhor maneira de conhecer uma outra pessoa é embarcar; deixar-se jogar e ir lidando com os empecilhos à medida que aparecem, sem sobrecarregá-los. O beijo fora bem molhado sim, mais molhado que qualquer outro beijo que já tivera dado – e foram muitos -, mas será que toda aquela humidade estaria confinada somente à boca? refletiu ele tentando repelir a repulsa  de agora há pouco / de pouco atrás. Aí a estória seria outra. Imaginou-se ungido, untado.

As mãos começam a escorregar de lado. Ela vira canhota, ele destro em busca de mel. Ela quer subir na árvore, ele entrar no tronco, mas aquele sangue em brasa embaça o tempo ao volante e eles subitamente chegam ao destino sem nem antes iniciar-a-preliminar. 

Puxa-se temporariamente o freio de mão. Os adolescentes fecham o zíper e entram na festa, encharcados. Aos poucos as pessoas deixam de lado o que estão fazendo e olham pela janela em busca de chuva, nada. Olham para suas roupas, secas. Para seus pares e ao redor, nem um pingo. Mas Betinho e Joyce deixam pegadas. São pintos molhados e sorriem aquele sorriso que não demanda entendimento, mas sugere infinitos olhares. 

A anfitriã os encaminha para um quarto, e a porta se fecha.

Eles voltam a se beijar e ele agora aceita o banho. Ela era filha de Tétis e ele aceita também o oceano. Eles se deitam na areia e abraçam seus molhares. Ela o bebe, e o seca, e ao mesmo tempo o encharca. Sua língua é sinônimo de volúpia, e ela brota de cada um de seus poros; e dos dele também, que se afoga a cada gozo. E renasce a cada volta à superfície para mergulhar novamente, um canto de sereia.

Ou uma sinfonia, ele não sabe distinguir. Os sons do prazer são os sentidos e ele os tem à flor da pele. A música o penetra em vórtices de água e eles nunca tem fim. O formato é o mesmo, mas o líquido nunca é o mesmo; por isso, mil sereias; e ele, flutuando no meio da água, ora calma ora um turbilhão de línguas revezando-se de hora em hora.

Até que cessa. Abrupta e brutalmente.

Ele desperta como que do sono-do-gozo por um gota que cai do teto, ‘talvez o colírio da Deusa’, ele pensa, Mas abre lentamente os olhos e vê que ela não está lá. O som do canto também sumira, e no lugar dele, só o daquela água viscosa que descia pelas paredes, brotava do chão e ia aos poucos inundando o quarto.

eCp
#euriscritor

Caos

“… entre o conhecido e o desconhecido, havia, e há esse mar de cinza, esses infinitos tons que eclipsam o maniqueísmo das coisas: a dualidade que insiste em habitar aqueles que se deixam reger pela polaridade do mundo. Para os outros, que habitam digamos, nas possibilidades, talvez haja um pouco mais de aventura, pois no perigo dela, curiosa, também se acolhem as surpresas que o mundo do talvez tem a oferecer.”

Ao sabor dessa fala do sábio, pouco se ousou falar. Ele deixou claro seu ponto de que a questão não era exatamente escrever sobre o que se conhece ou não, vai saber, mas sobre certezas e dúvidas, certos e errados.”

Então continua:

“Há, por exemplo, gratificações mais plenas do que a descoberta de um novo caminho para o mesmo lugar? Ou da sensação da areia nos pés, da areia da praia se intrometendo no meio dos dedos, da brisa que vem junto com o aroma, do azul de mil matizes ou mais. Há presentes mais bem dados que estes, do inusitado, do sensível, das percepções?

‘O senhor tem um ponto de vista interessante’, surpreendeu um outro lá do fundo que queria debater, ‘sem dúvida a aventura muito nos serve, mas temos que tangibilizar algumas coisas. O que seria essa ‘sensação’ nos pés, essas percepções de que fala? Como as pessoas ativam isso?’

“É um aprendizado. Ao longo do tempo, esse de sensibilização: olhar para uma árvore por horas e saborear seus verdes. Bochechar o vinho e depois cuspir, se olhar no espelho e ver os dentes rublos. Antes de sair, olhar de novo e fazer caretas. Ouvir Beethoven, chato; Ouvir Vivaldi, um pouco menos; ouvir Tchaikovsky, vem o aceite; Bach, já to gostando: Mozart, adorei, não por que um é melhor que o outro, mas porque já aprendeu. Ouviu o suficiente para perceber as sutilezas; seus ouvidos foram educados pela audição voluntária. Somente a partir daí a arte faz-se conhecer. O desconhecido se abre ao terapeuta e vira palavras nas páginas de Philip Roth, Italo Sveno, entre outros que entraram na floresta encantada, ou na proibida de Hogwarts.”

‘Eu escrevo sobre o que conheço, Sr., disse um autor recém lançado. Acho que a confiança brota a partir da aventura que já conhecemos. Depois a ampliamos; mas a segurança do caminho pavimentado é essencial; como a fundação de um edifício, mesmo que ele depois passe a acomodar bruxos e fantasmas. A gente essencialmente escreve sobre o que conhece e vai viajando ao longo do caminho, mesmo que de vassouras, como você mesmo aventou.’

O sábio se mantém calado pois sabia que tinha engajado a turma. O assunto agora estava aquecido, e aparentemente o auditório estava dividido em dois: aqueles que acreditavam na escrita a partir do que não se enxerga, e os que sustentavam a tese de que, primeiro você escreve sobre o que se sabe, evitando riscos desnecessários, para só depois abrir as asas-abraçando o devaneio.

‘Vocês acham que eu devo escrever uma história ambientada na Escandinávia, ou no Brasil, onde passei a maior parte dos meus anos? Falo sobre as almôndegas que vovó fazia ou sobre os tais scargots que nunca senti? Será que o gelo descrito por mim será como o frio sentido no Alasca? Uma casa cá é igual a casa lá?’

Este parecer do jovem talento colocou, como dizem, ainda mais lenha na fogueira. Buchichos começaram a o-correr e ficou óbvio que o debate não teria, digamos assim, um vencedor; e infelizmente, pois dessa forma a história não tem conflito. E eu me pergunto: como um simpósio sobre literatura pode acabar assim? Está na estrutura do conto a existência-da-treta. Mas até agora, pelo que a gente observa, tudo podia acabar em palminhas mornas. Entre o desconhecido e o conhecido, a trilha do meio estava crescendo. Mas tinha gente que ia num outro caminho.

‘Não podemos esquecer do inconsciente-gente. Tudo advém de lá. Supomos fazer algo conscientemente, supomos. É o que dá pra fazer, pois o inconsciente é soberano, já dizia uma velha amiga. É ele que rege, é ele que comanda. E é tão ardiloso que ainda nos ilude a acharmos que fazemos algo de vontade própria. Dessa forma, se a escrita é pior ou melhor, se de um jeito ou de outro, pouco importa: o que sai pela mão já nos habita por dentro há tempos.’

‘E nos rasga’, diz a bocuda de quatorze, jovem promessa da escrita modernista, muito em acordo com o que acabara de ser dito. ‘E depois vomitamos. Isso é escrever! E quanto menos controle tivermos sobre isso, melhor ainda.’ 

Os puritanos da escrita, que tinham inclusive um clube, e uma evidente rixa com a Moderninha, não se contiveram: “Vomitar é o que vamos fazer em cima de você, garota, se não mudar essa posturinha transgressora.”

Será que a busca a partir do desconhecido não uma espécie de transgressão? me pergunto enquanto o debate continua. Toda boa aventura flerta com a morte, e não há nada mais desconhecido que ela. Taí uma outra perspectiva. Será que vão abordar? O ato de criação, de produção literária como uma espécie de morte?

Os puritanos haviam cutucado a onça com os próprios braços, e ela revidou em silêncio: ‘vocês não conhecem o poder da juventude’, pensou, enquanto eles faziam o mesmo, antagonicamente: ‘você não imagina o poder da tradição’. Mas o silêncio do bicho os incomodou mais, pois eles queriam lutar. Era da natureza deles, os puritanos.

Começou o empurra-empurra; o conflito que vinha nascendo bem-para-além do debate. As vaidades também se sobrepuseram à questão e todos começaram a ter voz ao mesmo tempo. O volume automaticamente se elevou à medida em que a classe baixou e todos ensurdeceram. 

É a revelação, um prenúncio do caos.

Um caminho bem aventurado, no entanto. Contava-se ali uma outra história; uma narrativa com personagens fortes, num cenário propício à imaginação, e um arco curto, pois já estava no final. O empurra empurra esbarrou num tombo, um tropeço e degeneração. Tomava-se partido para lá e para cá, e agora o conhecido e o desconhecido, numa outra acepção, aglutinavam-se, cada um com o seu igual. 

E fecharam os punhos. E seus olhos arregalados eram de incredulidade pois aquilo não fazia sentido. Sua arma sempre fora a voz. Mas de repente se lembraram que já houve muitas mortes, sim, perpetradas por debates literários.

Os punhos fechados se enrijecem ainda mais e seus rostos estão sérios, muito sérios, prontos para um próximo passo, soco, chute, unhadas e puxões de cabelo pois as mulheres estavam lá em peso. E agora, e de certa forma lideradas pela bocuda que, obvia e rapidamente assumiu uma posição de destaque pois queria vomitar de verdade. Adivinha em cima de quem?

Os puritanos se aquietaram por um tempo, mas negociavam parcerias. Pregavam também em nome da literatura, a grande bandeira da hora que todos clamavam ter. E na verdade tinham, pois para início de conversa muito se falou sobre o meio-termo-das-coisas; mas agora, no clima que nenhum ar condicionado consegue amornar, os punhos são atraídos como polos opostos e as pessoas vão se aproximando, o arco se flecha.

As bocas se abrem e bem de perto discutem, trocando amplos borrifos de saliva. O tom vai para o andar da gritaria e ninguém desce do salto; pelo contrário, eles já estão nas mãos das moças, que podem ser mais mortais que punhos.

“Então é isso, A Idade Média vai voltar?”, alguém grita ali do meio ainda tentando acalmar o inevitável. Mas como não continua, o inevitável dá sequência e as pessoas se tocam, e isso basta. “Não encosta em mim, não encosta em mim!” soou como um coro e também como um grito de guerra. As pessoas se engalfinharam e começou a briga. Num primeiro momento, entre os clãs que tinham se formado, mas como o espaço era apertado, em questão de segundos os argumentos se pulverizaram, ninguém é mais de ninguém e algumas pessoas caem no chão. As roupas se rasgam como papéis e serão pintadas em aquarela, ora preto ora vermelho, rosa-com-suor.

O silêncio de outrora foi substituído pelo som-do-soco. Diferente do tiro, mas tão seco quanto. E como normalmente é seguido da dor, que não é seca, e quando multiplicado por dezenas, vêm à mente um Inferno de Dante. Era lá que estavam imersos, numa caverna que cada vez mais lembrava também a de Platão. Com a peculiaridade de que aqui todos a conheciam e mesmo assim escolheram as sombras.

Se escondiam também atrás das cadeiras e por cima lançavam uns aos outros objetos dignos-de-morte: copos, pratos, jarras, e já se podia ver gente com facas na mão. E garfos, e outros pratos já quebrados, pintados. O vermelho contamina os olhos, que contaminam outros, e o pavor se alastra; e todos querem correr ao mesmo tempo pois o verdadeiro e legítimo desconhecido, para além da teoria das palavras, já está inclusive sentado, aguardando o desenrolar dos acontecimentos.

A bruteza cresce entre as celebridades da pelica e a moral decai. O golpe baixo vira aquele gancho de esquerda e o salão vira um ringue, uma tela em branco onde aquelas facas e garfos agora pintam mais uma luta do século.

“O Orgulho da Academia de Letras” logo imaginei a chamada do Jornal do dia seguinte. Ironia era a melhor palavra para representar aquela barbaridade. 

Jamais que o Sábio poderia imaginar uma coisa daquelas. Ele que, a propósito, mostrou muito bem sua chancela quando resolver sacar uma arma no meio do salão e disparar um tiro para cima, quebrando uma parte do gesso que cai justa, e também ironicamente em cima dele. Vem um silêncio diferente, congelante e atrelado a um sorriso totalmente de lado que tomba sobre cada uma das pessoas também. Um pesar de cabeças os leva ao chão, resignados e ainda tremendo.

A Bocuda, de joelhos abraça o puritano, que retribui. Alguns olham e contemplam o que poderia ser um final razoavelmente feliz para a corrente balburdia. Mas ela pega aquele pedaço de prato pintado que jazia ali ao lado, e pinta o pescoço dele como um impulso do maior dos artistas. Daquele que respeita somente as vísceras, o vômito, como ela mesma dizia. 

E depois de espalhar pelo chão aquele vasto monte de sangue que jorrava da lata-pescoço, põe-se a escrever a história que acabara de ser contada.

ECp
#euriscritor

Sono Falta

Acordou. Como se nada tivesse acontecido, ou simplesmente sonhado, acordou. Depois de setenta e duas horas embaixo das cobertas, serenamente despertou para o dia que lá fora brilhava. Do lado de dentro, ainda escuro, alívio. Todos que passaram pelo quarto durante aquele período, achavam que ela não voltaria mais; que desta vez estava presa, confinada para sempre no que acabaram por chamar de sono sem fim.

Desde pequena, sempre fora assim. Vivia o dia e quando chegava a noite, dormia. Mas na manhã seguinte, quando a mesa do café já era só toalha, ela continuava no lençol. No início os médicos diziam que era normal, mas com o passar do tempo, e as horas no escuro aumentado, virou excessão; depois, especulação. Deveria haver algo de errado, mas todas as funções do corpo estavam de acordo com a cartilha. Fisiologicamente também não havia problemas, e a menininha, sempre sorridente, dormia e acordava conforme a vida ditava.

Na escola, logo virou celebridade, pois não raras eram as vezes em que pulava um, dois ou até três dias seguidos. Depois reaparecia, o fantasminha camarada, e se tornava somente mais uma garota comum do terceiro ano. Na manhã seguinte estava lá, na outra também e na seguinte a mesma coisa; mas a cada dia que passava, os colegas iam ficando cada vez mais ansiosos para ver quando ela novamente sucumbiria ao sono profundo. Assim era entendida a coisa: de tempos em tempos a fantasminha camarada tinha que dormir um pouco mais; e dormia. Os professores entendiam a questão e acreditavam, ainda que com alguma desconfiança, que com o tempo o fantasma ia perder a transparência; ledo engano, pois o tempo só aprofundou ainda mais seu sono. À medida que crescia, mais dormia e quando chegou ao ensino médio já o fazia por duas semanas ininterruptas.

Os novos professores se adequaram e os colegas também. Os namorados nem tanto: aquele amor de manhãzinha nunca era garantido e a segunda vez podia demorar uma eternidade.

Veio a faculdade e com ela algumas complicações. Estava ficando difícil para o mundo se adequar a ela. A civilização estava presa ao tempo e também ao processo. Ela não respeitava o tempo do mundo, e nem conseguia, mas o mundo tampouco se importava com ela. Mas a faculdade, por princípio cientista, dobrou os joelhos, e ela continuou por lá. E Começou a entender melhor que o tempo não era somente seu; e que valia dinheiro, e que era escasso. Sim, era bem escasso, ‘e o uso que eu faço dele’, ela se perguntava, ‘seria um desperdício?’ ‘Não’, ela realmente não achava, pois só dormia quando precisava de fato. Os amigos atestavam: ela chegava a usar a técnica dos palitos de fósforo nos olhos, e só quando já estava à ponto de ter as pálpebras perfuradas é que a levavam para casa dormir, para até quando?

Ela na verdade pouco se importava, pois ao dormir, não dormia o sono dos iguais. Noite adentro era pura consciência.

Ela decifrava a fantasia durante o sonho, e pela manhã não havia lapsos, nem resquícios de uma memória esfumaçada. Tudo estava lá, a descoberto, claro como a neve, o dito e o não dito. Suas percepções também voltavam mais aguçadas e sua sensibilidade era um Jardim à Flor da Pele, uma floresta repleta de sentidos que jamais alguém sentiu.

Tato, olfato, paladar, visão e audição, tudo era ampliado, realçado pela duração desse sono único. E como ano a ano ela passa a dormir mais e mais, suas habilidades se desenvolveram(viam) de acordo; ela é puro aprimoramento, como que se durante os períodos em descanso ela se ativasse. Como se o sono fosse claro, e não escuro, um caminho que ia se revelando à medida em que fechava os olhos.

Quando abre, dessa vez já se foram quatro meses; mas o quadro foi pintado, a música escrita e ela mesma já toca o violão. Tinha aprendido um pouco mais de filosofia e podia dar palestras sobre economia sem nunca ter estudado os números. Estava mais bonita, inclusive: os olhos mais azuis, a tez ao invés da pele, os cabelos mais sedosos, os lábios mais carnudos; porém também ficou sem o namorado que cansara de esperar. Apesar da versão retocada que vinha a cada amanhecer, havia o vazio do tempo que existira fora dela: o tempo do outro, que a propósito, passava; e ele envelhecia como todos os demais.

Percebeu com surpresa que o tempo dela, ao contrário, a preservava. A cada descer de pálpebras, também economizava vida. Era como se fosse colocada numa capsula do tempo e trazida de volta maior.

Fazia bem dormir, melhor ainda acordar, fosse quando fosse.

Alguns diziam que era o sono dos deuses, e assim, como num lento piscar de olhos, o fantasminha, aquele camarada deu lugar a Xerxes e seu sono foi ficando cada vez mais poderoso; e desejável. 

‘Não quero mais ficar acordada’, ela dizia consigo’. E se eu dormir por, digamos um ou dois anos, o que vai acontecer? Como vou acordar? Será que consigo controlar meus aprimoramentos?

Haveria limites para o crescimento? pensou e concluiu que valia a pena tentar. Os médicos já tinham concluído que a maior atividade cerebral de fato acontecia nos momentos de sono profundo; no meio-do-dormir, onde se instalava a memória RAM, quando as pálpebras tremendo indicam o despertar do sonho de Freud: inconsciente, sexual, papai-mamãe.

No caso dela não; muito pelo contrário, recordações à flor da pele. Quando acordava, lembrava de tudo, de todos os lugares por onde havia passado, com quem conversara, o que aprendeu, como mudou-mudava-muito. Era a essência da lembrança consciente o tempo-todo & dormindo. ‘Sou uma super-horoina?’ conversava com o espelho e sorria, achando sem-dúvida-que-sim. #boradormir que os tempos são agora e é esse o novo formato.

Cinco anos se passaram e as suposições se confirmaram. Quando acordou, tinha a sabedoria de Odim, a beleza de Cleopatra, a velocidade do Flash e por aí vai. Foi até ao Altar. E foi quando complicou, pois os homens de branco não queriam um outro Deus. ‘Mas eu sou uma’? especulava enquanto crescia e incomodava. E ao mesmo tempo encantava. Era a Deusa do Sono, e como tal elevada, cada dia mais Deusa, fez-fiéis, seguidores da fantasia, uma ode à liberdade, à leveza, ao espreguiçar criativo, sugestão para a próxima obra de Domênico.

Espreguiçou-se. E dormiu-se. E até os homens de branco sucumbiram ao encanto. O mundo aparentemente precisava dormir, e até os que pouco o faziam, escravos do trabalho – ou do prazer – se renderam e deitaram. Encostaram suas cabeças no conforto sugerido pela divindade e deixaram-se levar pela magia. Aos poucos, aqui e ali, o mundo horizontalizou-se. 

E descansou. E os homens descansaram por uma geração. Não houve trabalho, não houve lazer. Ninguém comprou nada, ninguém vendeu. As bolsas pararam e ninguém mais especulou. O dinheiro de uma hora para outra não servia mais para nada – nem para comprar o próprio tempo – e os carros enferrujaram; assim como os ônibus, os caminhões, os aviões. As lavouras estragaram e as larvas adoraram, assim como todos os insetos, que a propósito raramente dormem. E o mundo foi deixado às moscas.

O silêncio prosperou agudamente e o único som que se ouvia dos homens era o ronco. O restante eram relinchos, miados, mugidos, chiados, uivos… a folha que caía, o rio que passava, as ondas que iam e vinham com suas espumas, e não apagavam as pegadas de ninguém pois não havia mais pegadas; ou só as das gaivotas que por sua vez pescavam e crocitavam livres à luz de Fernão Capelo: uma outra espécie de Deus, acrobático, ousado e namorador de limites; assim como a Deusa do sono, mas cujo aprimoramento se dava de olhos abertos.

De olhos fechados, a sociedade continuava a repousar; a expectativa era também de evolução, mas como todos estavam no sono-ninguém-sabia do futuro. Este fora especulado lá atrás, na consciência, e dera muito pano para as mangas. Mas agora o lençol era soberano e toldava opiniões. A agitação acontecia no aparente-breu onde as falas sonoras não ressoam, mas são-sim percebidas. Um dia se ouve o que lá no sonho foi falado e um dia vem à tona.

Um dedo se mexe. Uma perna se estica. Os lábios ainda estão colados; os olhos também. A respiração é consciente e profunda. As pessoas aprenderam a meditar e continuam assim até o tempo da nuvem passar. Ela agora é clara e não pesa sobre a cabeça de ninguém; é silenciosa e se move na rotina daquela gaivota que simplesmente passa-pesca-e-some; desaparece para dar lugar a um outro pensamento que também vai passar; assim como o próximo, o próximo e o seguinte, tudo passa.

O sono que faltava também, e a Divindade que durante todo esse tempo também dormira, desperta. E desperta-observa o mundo que velava espreguiçar. O som do bocejo é como um mantra universal, e todos cantam em uníssono o canto que aprenderam em sonho; na viagem de cem anos que fizeram pelos quatro elementos essenciais. Agua, ar, fogo, a terra é a mesma mas mudada. 

“E agora?” uma voz pergunta a esmo.

Mas não houve resposta. A Deusa voltara a dormir.

 

Ecp

#euriscritor

Desengonço

Após o banho da manhã, ele vestiu as calças, colocou as meias, os sapatos, se aprumou, e espelho. Sorriu confiante, correspondeu ao reflexo e foi tomar o café. Antes disso, uma passadinha no banheiro dos felinos para limpar as caixinhas de areia sempre lotadas ao fim de uma noite; quando nota que acabou de pisar no cocô do bichano, gatos muitas as vezes erram a pontaria.

Assim começa o dia promissor de Frederico, limpando a merda-do gato-no sapato. 

Mas Suco de Luz  é o nome do seu desjejum e ele vai bater as frutas e os legumes. Hoje o suco vai ficar da cor do vinho tinto, como também a sua camisa branca que ele acabara de vestir, pois o liquidificador já estava ligado quando ele colocou na tomada. Respira fundo e volta ao espelho, onde novamente responde ao reflexo, mas dessa vez com um sorrisinho meio de lado. Se troca novamente, mata o suco e vai. Já dentro do carro à caminho do seu universo paralelo, meio caminho andado, lembra que esqueceu o presente de Cintia em cima da mesa de jantar. Xinga uma quinhentas vezes, olha pelo espelho retrovisor, se enxerga de novo de canto, e de olhos abertos sorri grande. Não tem jeito né amigo, diz pra si mesmo, e pega o primeiro retorno. 

Já com a torta de morango na mão, ainda que com trinta minutos de atraso, é recebido com alegria pela jovem que o esperava também sorridente; mas ele, ao chegar e também ansioso, tropeça, e só para nela, com o doce apertado entre ambos. Um leve constrangimento, é claro, sempre namora com essas situações, mas logo vem um sorriso, pois ela também era assim. Trombaram um dia lá atrás, e começaram a se amar, num quarto todo bagunçado, tipo com poucos lugares para colocar o pé no chão. Um emaranhado de papéis, livros, pincéis, telas, em tudo se escrevia uma história bagunçada, a partir do nada, ou a partir da bagunça, talvez o propósito da história que se desenrola, ou tantas outras ainda por des-desengonçar.

O abraço do tropeço é vermelho e torpe. Eles se deixam cair ao chão e pintam mais uma vez sobre baldes de tinta que viram, histórias de um significado por-vir. O gozo é a melhor preguiça da manhã e assim morrem por instantes, no chão, largados e cor de letargia.

Ao despertar já é hora de pegar as crianças na escola, e vão, juntos-em-cima-da-hora. ‘Onde está minha camisa?’ ela pergunta enquanto ele procura a carteira. Ela desliza só de meias entre os pincéis que caíram e ele tenta fazer sentido de todo aquele quadro (Jackson Pollock) que acabaram de pintar.

Na fila da escola, de dentro do carro, ambos contemplam aquele mar de formigas para lá e para cá. Pais se trombam, se abraçam e encaixam na dança, cada um encontrando sua prole como que pelo cheiro. Ou depende da ótica, pois de dentro do carro eles veem uma Princesa e um Guerreiro, sujos da batalha e com o sorriso de um recreio bem caótico, se aproximarem. As portas são abertas e eles são sugados para dentro do castelo, onde arrefecem, descansando a babel.

Frederico deixa Cintia no atelier e volta dirigindo sozinho no banco da frente, seu olhar é só para trás, e ele bate o carro. Nada sério, mas o suficiente para despertar as crianças que já não estão mais no castelo, mas sim num Gol usado, gastão, endividado e precisando de conserto.

Não obstante chega a polícia! Um deleite para as crianças, aquele grito vermelho e amarelo piscando. Para o Pai, mais um emoji, aquele da carinha com os olhinhos virados para cima, lamentando o inevitável. Mas ele era assim, e bom também de conversa, e talvez mesmo por isso, pelo desengonço que o habitava. Assim leva o guarda na conversa e logo convence os filhos que aquilo tudo fora só um sonho; e que eles  podem voltar a dormir.

Chegando em casa, vira-vira-realidade, tem-se que fazer lição de casa; “cadê o material?”, ele pergunta aos filhos. “Tava no colo da mamãe”, diz a Princesa, e ele vira os olhos. E ela também entende o motivo, e ambos sorriem. “Será que serão como eu?” “Claro que não”, responde o Guerreiro com a certeza do jovem filho de quem era. E tropeça na bolinha de tênis que estava jogada ali pelo canto, e cai no chão no exato momento em que mamãe abre a porta e, vendo todos em harmonia, sorri.

ECp
#euricoescritor

Invasão de Domicílio

Via o dedo de longe, chegando sem hesitação, entrando na sua caverna. Imediatamente todos recuavam contra a parede e espreme-espreme. Depois o aperto, o grude e o medo, que ironicamente logo passava assim que algum amigo era arrancado para fora; antes ele do que eu. Sim, éramos extraídos por causa de uma espécie de gosma que reveste todo nosso corpo.

E aquele dedo que entra, e que varia de tamanho, com seus infindos poros-e-micróbios, adere a nós como-cola e somos levados; e depois apertados, e manipulados entre os dedos, polegar e indicador, e por vezes lançados como pássaros mundo à fora em formato de bolinhas. Quase sempre viramos bolinhas.

Mas eu por enquanto escapei. Como já tinha visto lá de dentro os hábitos do corpo onde morava, conhecia mais ou menos os horários certos do sufoco, e me escondo lá no fundo. Bem no fundo, aliás, lá perto da vias aéreas abissais que nem o maior dedo de gigante alcançaria. Talvez uma unha muito bem cunhada para isso, mas não acredito que valha a pena ter um casco desses só para tirar meleca do nariz.
Então vou vivendo.

Meu anfitrião não é, digamos, constante; as vezes fica vários meses sem incomodar e isso ajuda. Fazemos a maior festa durante esse período, sujamos todo o salão; e como multiplicamos vorazmente, está sempre sujo, e é só quando ele assoa o nariz que, digamos, lavamos a alma. Muitos vão embora, é claro, e perdemos muitos amigos e parentes, mas eles estão doentes, por isso tudo bem. Nem lamentamos muito, pois o verde, para nós, é estragado, e quando vão, respiramos melhor.

A pia sofre, pois os mortos grudam, e não saem. Então tem que esfregar o dedo. A pia é branca; para nós, o contraste verde-branco é uma espécie de espelho do futuro e assusta.

E assusta ainda mais quando ele encasqueta que tem alguma coisa fora do lugar, uma caquinha antiga, seca; ele tem que futucar. E convenhamos, e voltemos novamente ao assunto: não cabe! Um dedo não cabe dentro do nariz, direito ou esquerdo. Já olhou no espelho?Vai lá, faz o teste. É das coisas mais esdrúxulas que há. É como tentar enfiar a mão inteira dentro da boca; você vai se babar todo e nunca vai conseguir.
Mas com o nariz, suponho por ser mais flexível (conclusão a que cheguei por ter visto a cena com os próprios olhos diante do espelho), a pessoa até acha que pode-com-tudo. Vai enfiando, arregaçando as pregas de uma venta que eu achava até bonita e fica lá, por minutos, juro, cavucando a areia da praia até achar água. Mas o que jorra é sangue, e o dedão sai vermelho, parecendo ele o machucado. Olha no espelho e vê agora uma espécie de distorção: um buraquinho de um lado, do outro um buracão, e ele olha para o dedo, incrédulo. E enfia de novo para arrancar aquele maldito pedacinho que tanto incomoda; futuca um pouco mais e, só quando começam a descer lágrimas dos olhos, se rende. Veja bem a persistência! Coisa que nós também somos, a propósito; as vezes intratáveis, visguentas e um tanto teimosas.
Como assim, nos tirar da nossa casa à força? 

Não fazia sentido.

Mas a Televisão explica tudo, e era nesse momento da noite, que todos nós prestávamos muita atenção ao que acontecia do lado de fora; ficávamos bem pertinho da borda e corríamos o maior risco – mas era o único jeito de aprendermos alguma coisa. Num programa médico que pra nossa sorte ele estava assistindo, descobrimos que éramos essenciais para a pessoa. A gente protegia, ajuda a respirar. 

Ele sim precisa de nós, e não o contrário. Mas Basta chegar o ócio que o dedo adquire vida própria: parou no semáforo, lá vem dedo. Cinema desacompanhado, dedo. Palestras virtuais, câmera fechada e minutos de tela escura sugerem atividade. Sentimos a dilatação e nossa casa cresce momentaneamente.

Sofremos com esse vai e vem. O corpo produz exatamente o necessário de nós, mas quando o tamanho da casa aumenta, ele supõe que somos mansão, e nos lota. Por isso decidimos que alguma coisa tem que ser ser feita. Nos reunimos na última assembléia e decidimos que vamos ser resistência. “Ninguém larga a mão de ninguém”, um outro ouviu dizer, e acho que vamos seguir essa linha. O decreto então era para que, a partir daquela data, todos fossemos ainda mais grudados. Não bastava mais o visco natural, mas tínhamos que mudar no nosso comportamento para que ele mudasse o dele: amálgama.

Por isso entrelaçamos. A corrente ficou forte e ele quase sucumbiu. Houve um dia inclusive que apelou para uma pinça e chegou arrancar uns poucos jovens, mas a dor foi tanta, e o sangue e as lágrimas, que ouvimos ele mesmo dizer que jamais tentaria uma nova incursão. 

Mas como a lâmina que corta, a farinha que se cheira, a erva que se fuma, o gole que se dá, a mão obsessa. Os dedos também se unem e atacam o corpo todo: os dedões são chupados, as unhas roídas, só as dá esquerda. A pele é arrancada em pequenos nacos pelas unhas da direita e até a cabeça é cutucada pela mesma. Cabelos param de crescer. Os olhos são apertados pelos indicadores e lacrimejam. 

Uma dessa gotas desce e passa bem perto da narina. É o suficiente para nos sensibilizamos, e por uma fração de segundo soltamos as mãos, pesarosas.

#euriscritor

FARPAS

Lá estava ele, todo enroscado na cerca.

Havia sangue. Não muito, mas escorria pelos pequenos furos que tinha na pele e pingava na areia que logo o absorvia. Dos furos maiores vinha um fluxo mais grosso que também acabava na terra, em poças nutridas por gotas mais gordas que tamborilavam na superfície, lembrando aquelas que caem na água, mas vermelhas, formando ondinhas.

O chão empapava e o homem urrava.

Tentava se desvencilhar das amarras, mas em vão. As farpas se enroscavam ainda mais em seu corpo já preso, e as que já estavam grudadas entravam ainda mais na pele, rasgando e cortando o tecido. 

Tinha que ficar quieto, imóvel. Mas seu corpo involuntariamente tremia, fazendo as farpas vibrarem. Sua respiração tampouco calmava, pois ao tentar diminuir o ritmo, controlando entrada e saída de ar, peito e abdômen também se moviam e o arame roçava.

O que quer que fizesse, só piorava.

Ele arfava de dor e a única maneira de suportar aquele fardo-da-hora, aquelas malditas farpas, era a imobilidade total. Fechou os olhos e aos pouco pode ouvir o som de passos que também aos poucos se apressavam; vozes que chegavam mais perto e, agitadas, pediam socorro. 

Ele não pedia mais nada pois finalmente aquietou-se.

Os que estavam por perto não sabiam se por quanto tempo ou para sempre, pairava sim uma dúvida no ar. Mas o calor do corpo e alguns espasmos ainda sugeriam vida. 

Um olhar mais próximo dos primos mais ligados causou ainda mais temor, pois havia ganchos nas pálpebras, no nariz que escorria e no lábio inferior que fora fisgado como um peixe. A orelha fora quase arrancada fora e pelo resto do corpo só se viam farpas enegrecidas pelo sangue que coagulava. 

O tempo passava e ninguém ousava-palavra. O acidente parecia catástrofe e a solução não estava ao alcance de ninguém por alí. Os celulares não pegavam de jeito nenhum e a realidade bateu à porta sugerindo alguma ação, qualquer que fosse. Assim um dos peões que acompanhavam o passeio da família pela fazenda montou prontamente no seu cavalo e, acompanhado por uma tia partiu rumo à sede onde esperavam encontrar uma solução, ainda que bem distante. Teriam que galopar uns cinco quilômetros sem ao menos a certeza do que fazer: ambulância, bombeiro, polícia?

Os que ficaram para trás especulam sobre como confortar o ferido e, com ânimos à flor da pele, resolvem também apontar responsabilidades. 

Tudo teve início após uma parada para descanso embaixo de uma providencial mangueira; alguns inclusive apearam de suas montarias para saborear algumas frutas que já tinham cedido. Outros não desceram, sedentos para voltar para casa; e um dos primos cutucava o outro sugerindo uma corrida de trezentos metros até a porteira mais próxima. Apesar das recomendações dos adultos de não seguir com o plano, como declinar a provocação do primo mais jovem? Sempre lhe fizera de capacho, e agora seria só mais uma vez. Idéias antagônicas pois o desafiante, dessa vez, tinha certeza de uma campanha exitosa: ‘esse meu primo sempre foi um bosta: roubou minhas namoradas, colocou a pimenta mais ardida no meu prato e me fez passar vergonha, quebrou o meu carrinho de rolimã, não me emprestou o carro quando eu queria muito, me dedou para o meu pais, inventou mil e um apelidos…

E a lista ia embora, quando deram a largada.

Nobre e Chocolate foram açoitados como a disputa sugeria e responderam adequadamente. Correram como nunca, e a poeira que se levantou foi suficiente para que ninguém conseguisse ver nada logo depois dos primeiros cinquenta metros. Os primos se olhavam enquanto cavalgavam, gritavam e esporavam seus cavalos como se seus calcanhares fossem motores. Um olhava para o outro saboreando o momento-em-movimento; um queria continuidade, o outro ruptura. Por alguns segundos nem respiraram. A velocidade era insana, seus corpos literalmente voavam para cima e para baixo ficando pouco tempo no arreio; suas mãos firmavam as rédeas com força e seus chapéus já tinha voado quando um deles viu que não havia nenhuma porteira a frente, mas sim uma cerca de arame farpado. A vitória cedeu rapidamente lugar à vingança e ele simplesmente olhou para o primo, tirando-lhe todo o foco à medida em que reduzia a velocidade do seu próprio cavalo, Nobre. Chocolate, por outro lado, desprezando os impulsos do seu cavaleiro, mas obedecendo aos seus, brecou de chofre a poucos metros da cerca, lançando o outro que, não conseguindo se segurar na cela, foi lançado como uma flecha em arco diretamente para a cerca onde agora estava suspenso, pendurado numa teia de farpas.

A teia forjada pelo primo, que ele acabara de tecer.

Era uma aranha e agora refletia sobre o que tinha acontecido; ponderava sua participação. Alguns o acusavam pois ele tinha provocado o duelo. Outros falavam sobre fatalidade, mas a sincera troca de olhares durante a corrida era a única prova do que de fato acontecera. Os olhos não mentem.

Quanto a ajuda chegou, três horas depois, o olho do ferido se abriu, somente um risco, uma linha de esperança. E o suficiente  para encarar o outro e selar o reconhecimento de que as farpas dão voltas.

#euriscritor

A Maior Sorte do Mundo

Enquanto caía, refletia.

Logo ao nascer, meio que já via a morte, chegando e se mostrando cada vez mais de perto, e rapidamente. Era como o salto proposital de cima de um edifício, uma ponte ou avião sem paraquedas, mas sem propósito algum. Era simplesmente a vida. Um nascer já com destino traçado, daqueles óbvios, como o dos humanos, talvez um pouco menos vago e previsível. Afinal de contas, tudo ia acabar em água, escorrendo por ruas e calçadas, cabelos e ombros; cegando motoristas, acionando para-brisas, enlameando destinos, complicando festas ao ar livre; sempre molhando.

Quase nunca sozinha, mas existe só, desgarrada.

Quando em grandes grupos, enxurrada, que pode ser um problema. Ou não, dependendo do ponto de vista. Para alguns trabalhadores, no verão, conforme a hora do dia e dos graus que marcam lá fora, pode ser um alívio, especialmente para os engravatados, que gravitam por coberturas sem fim, secas e ar-condicionadas, pois quando saem para a rua e sentem a humidade, celebram como a um gol e sorriem.

Para outras pessoas, as que trabalham na rua por exemplo, um tormento. Pipoqueiros, engenheiros de obra, ambulantes, flanelinhas, todos fazem bico quando chove. Correm para coberturas e lá se protegem – como se machucasse, maldizendo os céus, o pai de todas, suplicando uma pausa; que vem, é verão.

No inverno, a prece é contrária: todos a desejam pois os os lábios pedem, a pele também, da canela então, só uma oração com muita fé. O corpo todo pede, o nariz implora e a boca, sem saliva para reclamar, cala. De noite, no arranhado da secura, vem em sonhos encharcados de esperança, mas a manhã é árida e o sonho se dilui sem água.

A reflexão deve ser rápida, que a queda é veloz e não há tempo; nada, na verdade a perder. O controle de fato não existe, estamos todos ao sabor do vento; e ela samba para lá e pra cá perfazendo uma bonita dança de respingos realçada pelas luzes dos postes da rua que dão um brilho digno de nota ao quarteirão que se avista lá de cima. O suposto fim está próximo, questão de segundos, mas um inesperado golpe de vento a empurra numa diagonal inesperada mesclando-a com outras, engordando-a e a jogando, pesada, num jardim repleto de flores.

A pétala da rosa verga, mas a gota, ciente do seu destino, sorri pois sabe que teve a maior sorte do mundo.

ECp
@euricoescritor

Amor de Pedágio

Amor de Pedágio

Toda semana, duas ou três vezes, as sete da manhã ele pegava o carro para ir ao trabalho. Operava o monótono tic-tac das planilhas financeiras durante todo o dia, e voltava já tardinha, mesmo-caminho-sentido-contrário, passando pelos quatro pedágios que já passara na ida, não gostava do sistema sem parar.

Por isso sempre trocava-troco, e moedinhas com os Operadores Rodoviários. E com as operadoras, cuja diversidade era o que mais o encantava. Uma diferente da outra, cada uma-um jeitinho, tipo e cores de cabelo, tons de voz e sorrisos de contrapartida.

Nada nunca levado muito a sério, até que um dia uma dessas contrapartidas o atingiu em cheio. O sorriso dela voltou de um jeito! Daqueles que congelam, e até o carro morreu. O de trás logo buzinou e a cancela se abriu. No ímpeto ele avança, mas logo se arrepende: ela ficou para trás! Tenta ir bem devagar, mas logo vem a segunda buzina cutucando e ele é obrigado seguir, olhos-só-retrovisor. Ela diminui de tamanho à medida que os metros passam e ele pensa em como resgatar o passado, mas a estrada é muito dinâmica. Queria voltar, mas não tinha jeito.

Teria que rodar vários quilômetros, achar o retorno, voltar, chegar pelo outro lado, encontrar um lugar-para-parar, mas que cancela era a dela? Assim segue relutante mas em frente, inconformado por não ter prestado atenção ao nome da moça que estava logo ali, fixado na janela por onde passou.

Por segundos ele o teve nas mãos, mas os dedos se abriram, e o nome vazou.

Não enxergou, mas tinha que andar. Enquanto dirigia então, sua cabeça de finanças começa a calcular, probabilidades: quais as chances de eu encontrar a bela moça novamente? São oito pedágios, quatro na ida, quatro na volta. Então são só quatro praças. Cada uma alargando para seis pistas de cada lado. Isso dá doze Operadores trabalhando ao mesmo tempo. São três os turnos, suponho; então temos trinta e seis Operadores por praça. Se temos quatro praças, somamos cento e quarenta e quatro funcionários, mas isso se eles não se revezarem, ou alternarem praças, ou trocarem turnos. “Ou se eu parasse com essa insanidade!?” disse para si, acima da música que ouvia. Pareceu uma conversa de doido, como assim, conquistar a garota do pedágio? Quais são as chances? 

Mas como bom homem de excel que era, resolveu investir nessa chance, desacreditando-a. Era plausível sim, por menores que fossem as possibilidades.

Sem fazer muitas contas, ou já considerando as que já tinha feito, concluiu rapidamente que precisaria ficar mais tempo na pista caso quisesse aumentar as suas chances. Por isso pede ao seu chefe que o libere para trabalhar full time de casa. Pedido aceito, ele logo equipa o carro. Agora tinha em mãos um Road-Office, um carro que servia de escritório e que podia mantê-lo na estrada por horas a fio até achar a alma-gêmea-do-sorriso-passageiro.

Passam meses, e com isso ele passa a observar-ainda-mais. Checa tudo quando passa nos pedágios: a estrutura da praça, as placas informativas, as cancelas quando abrem, quando fecham, o tempo de parada, os eventuais policiais, seus carros, as sirenes, os motoristas que viajam sós, os que não acham o dinheiro, os que o já tem o trocado nas mãos, tudo o que pode dizer respeito ao seu objetivo ele vê; em especial as meninas. Cada uma em sua cabine, outras andando pra lá e pra cá, sempre ocupadas. Sempre solicitas, de marrom e justas. Sabe-se lá o porque, mas combina e enche os olhos dos motoristas que, ante a rotineira monotonia da pista, abrem sorrisos privados que animam a própria viagem.

Ele observa seus andares, para onde vão. Imagina o corpo daquela que só vira o pescoço e imagina que esteja de havana também. Por isso faz o caminho inverso, e se excita; a todo pedágio, a cada vai e vem.

Como um vício então, o fardo da fila vira desejo constante, e agora ele ansia pelas paradas. Alonga-as com gordas notas de duzentos ou infinitas moedas-miúdas que sempre se espalham no chão do carro, ‘mãos furadas’, ele dizia; algumas ele deixa cair enquanto as entrega, e essas vão parar na pista. Algumas rolam para baixo do carro, que conveniência! Que quando acontece, pisca alerta. Ele desce do carro, calma e gentilmente, e observa. E se agacha para pegar as fujonas, observando ainda mais. E quanto mais procura aquela que lhe roubara o olhar, outros olhos o fitam, e ele corresponde, não tem jeito. O suposto motivo original da maluca empreitada vai aos poucos se diluindo à media que ele passa a enxergar além do que inicialmente previra – e até gostaria -, mas que dada a complexidade das contas à frente, e a variedade das coisas ao redor, resolve deixar o carro fluir. O rosto da moça sem nome ainda perdura, mas a cada passagem a janela daquela cabine vai aos poucos se fechando; enquanto outras se abrem.

As chances estão em cheque; o acaso agora é rei.

O estatístico passa a acreditar na sorte, e a noite também passa a mostrar interessantes caminhos. O número de pessoas trabalhando é menor, e são menores também as distrações: aquelas tentações marrom-amarelas que via de regra o hipnotizam. Como é bom, no meio da estrada poluída, ver belas moças desfilando pelas passarelas do pedágio, para lá e para cá, nos brindando, solitários-sonolentos motoristas, com sua gratuita simpatia, seu andar castanho e eventualmente toques de arrepiar, pois quando se sentia um pouco mais a vontade, deixava o dedo da mão que entregava o dinheiro, o mindinho sorrateiro roçar discretamente o dedo da moça na expectativa do toque.

Antes mesmo de chegar na cabine, já abria o planejado sorriso, depois a janela e enfim o braço era estendido como que para pegar e beijar-anos-quarenta, a mão da operadora; o som que vinha de dentro do carro estava mais alto, o Road Office era também musical e as moças ouviam. Como estava sempre bem vestido e perfumado, o pacote carro-pessoa sempre instigava, e o pessoal todo começou a comentar. E como agora sempre dizia seus nomes, para jamais esquecer o dela, ficou popular entre os Operadores; e agora, quando se aproximava das cabines, era logo celebrado: ‘lá vem ele’, e então pensava em quanto já tinha conquistado durante aquele ano de intensa investigação rodoviária.

Já entendia todo o funcionamento das praças, os rodízios, os horários de funcionamento, a quantidade de operadores e operadoras e também, de cabeça, o nome de muitas delas. Tinha criado uma planilha, e de dentro do carro, por voz, colocava cada uma delas em sua respectiva célula, à medida em que passava pelas cabines.

Quanto ao rostos, teve que improvisar. Depois de conseguir um suporte para celular e ajustá-lo à demanda, fixava-o no colo com a câmera aberta, e o posicionava num ângulo perfeito para tirar uma foto sem flash no momento exato em que falava ‘obrigado’ e sem levantar ainda mais suspeitas. Conseguiu assim uma amostra bem significativa de todo mundo que trabalhava por lá e já  tivera a sorte, inclusive, de encontrar com uma mesma operadora em três ocasiões. Isso motivou deveras.

Ainda assim, nada da moça que tanto queria, precisava encontrar. Iludiu-se momentaneamente com as outras possibilidades, outras curvas para quem qualquer outdoor serve, mas os dias-e-dias sozinho na estrada clamavam não por aventuras, mas por companhia, e uma, exclusiva, aonde estão aqueles olhos?

Já tinha rodado, segundo seu cálculos, cento e quarenta e seis mil quilômetros; quilômetros atentos, olhos de lince, óculos de visão noturna, observações de espião, toda uma parafernália tecnológica que custara as vistas da cara, mas mesmo assim, não conseguia achar a mais bela agulha do palheiro; os cálculos haviam alertado, mas mesmo assim ele insistira.

‘Chega’, chegou a pensar, mas a lembrança daquele dia, lá na distância de um ano, grudara como piche; portanto, avançou seu próprio sinal vermelho e acelerou asfalto à quente. À frente se muniu de ainda mais determinação e passou a não respeitar mais nem os feriados, período que até então ele usava para descansar sua lombar, obviamente já bem comprometida pelo tempo que passava sentado. 

Jogou as planilhas fora e foi à desforra. Custe o que custasse, a agulha teceria. Juntou todas as reservas que tinha e investiu: ajustou o carro para gastar menos combustível, fez acordo com todos os postos ao longo da rodovia e modificou o banco de forma a preservar sua já desgastada coluna.

Passou a acordar mais cedo. As cinco e meia já estava na estrada, e voltava somente as oito da noite. Assim, café da manhã, almoço e jantar, tudo se dava ao volante, exceto as necessidades que, a propósito, eram deixadas para os postos para ganho de tempo. Ficou então conhecido no circuito todo, e sempre que resolvia esticar um pouco mais as pernas durante as paradas, pegava uma lembrancinha, uma guloseima qualquer para distribuir entre o pessoal das cabines.

Logo virou uma celebridade entre os gestores de cada uma das praças. Àquela altura, ele sozinho já representava quase cinco por cento do faturamento, e seu nome, assim como seu carro, sua placa, seus horários, seu interesses, não passavam mais em vão.

A história se espalhava francamente e até as filas aumentavam. Todos queriam encontrar o cara. Todos queriam vê-lo. As meninas-de-marrom agora tentavam prever o horário que ele passaria e ajustavam seus turnos de acordo; os revezamentos foram ampliados e sempre que ele chegava, euforia. Sempre tinha mais que uma pessoa na cabine, até três! E foi aí que ele percebeu que o jogo estava virando. Na melhor versão do ditado ‘não cace, atraia’, sem querer virou um ímã.

Sua popularidade se tornou um polo positivo de atração e se multiplicou. De celebridade local, instigou também adjacências: outras praças de pedágio ficaram sabendo e de boca em boca sua fama ampliou. Não havia mais pedágios sem fila, fosse qual fosse o horário. Motoristas paravam no acostamento para vê-lo e o sistema ‘sem parar’ começou a ter problemas pois não tinha mais movimento. Caminhoneiros lá de cima de suas cabines o viam a distância e buzinavam celebrando sua chegada. O som inusitado atraía curiosos e as monótonas viagens adquiriam um outro tom. 

O destino depois disso era viajar sem ter chegada. As estradas eram um destino em si mesmas, e todos queriam saber do celebrado motorista que, ainda incompreendido sobre suas verdadeiras motivações, vira objeto de desejo de quem tem por motivo revelar.

Entra em cena a poderosa mídia. Não só aquela antiga-monopólio, mas a atual pulverizada. E dissipa versões. E cada um lê do jeito que quer. E cada um promove como lhe apetece. Motoristas de carro, de moto, caminhões; borracheiros, frentistas, atendentes de loja, operadores rodoviários, entrevistas. Todos querem dar uma palhinha para a mocinha da TV, que só fala a verdade, e chega voando. 

Nas semanas que se seguem a notícia é ampla e nacional, e repleta de explicações: ele gosta de viajar, é mecânico de carros, testa pneus, ama a estrada, é maluco, acelera por prazer, nenhuma das alternativas. Só ele sabe o verdadeiro motivo da empreitada e resolve revelar.

Em casa, sozinha-quietinha, está a menina dos olhos dele, assistindo o noticiário e especulando sobre quem seria a sortuda por quem aquele cara se apaixonou.

Eurico Conceição Palazzo
#euriscritor

Perfume de Chuva

“Eu acho que devia existir um perfume de chuva. Um perfume daqueles, entorpecentes. Daqueles que te fazem parar, olhar ao redor e fechar os olhos. Um rodopio inebriante, você quase cai no chão, mas continua a procurar pois já virou vício, basta uma única vez, já diziam os adictos.

Sou agora um, portanto, quero esse aroma-em-mim. Quero sentir o seu cheiro me entrar, gotas misturadas com suores, eu plena, cheirosa-de-chuva; que vem antes mesmo da água: o perfume que antecipa a chegada do príncipe, da princesa encantada que antes de pisar no tapete, inspira; cheiro de infinitos pingos, ex-nuvens que agora cansados pesam, escurecem e choram; e como é bom o cheiro-do-choro, perfumes de bebê concentrados em branco boiando em azuis. 

Realmente eu acho que tinha que ter um perfume de chuva. De verão, de pancada, aos montes para lavar a alma. Vou pegar um balde, sim. Vou colher as sementes-que-caem, órfãs ou não (há quem diga que são filhas doces do mar, rebeldes sem sal), e torná-las moças. As mesmas que descem alterando o olhar. Contrastam com o rei e nos dão arcos-íris.

No fim do pote, ouro, pois a chuva que cai, brilha. O asfalto vira champanhe quando tocado por elas num dia de sol, e somos brindados quando a sorte faz chover justo quando estamos por lá, na estrada, no meio de uma tarde trivial.

Vem a fumaça, de baixo para cima como um fogo sem cor; como se anjos de piche se descolassem neblina acima, orientados pelo rastro deixado pelas águas que caem. Rastro, o perfume de chuva vai deixar um longuíssimo rastro, daqueles celestes e essências de Netuno.

Um pouco do trovão e tempestade, uma pitada de dilúvio. Mais um pouco de garoa, chuvisco e uma mão cheia de orvalho e teremos a base perfeita para um perfume em dimensões que vão do sutil ao arrebatamento por nocaute. Até o ‘caldo’ das ondas namora com a chuva. E esse namoro exala espuma.

Quanto ao tamborilar na folhas, verdes essenciais. Quanto à infiltração na terra, textura; do seco ao molhado em questão de segundos e um sorriso-malícia que vem aos poucos, criando suspiros. E a pele já não é a mesma; os poros estão abertos e trocam; e roçam. O cheiro e o suor que deles escapa é o vapor que amanhã vai descer direto ao meu frasco.”

Por que eu escrevo?

Ela queria escrever. Seu pai não queria.
Optou por si.
Taí, já de cara, o primeiro motivo: ser-se. Manifestar-se. Vomitar a vontade e saborear a cor que se produz.

Quero então, e escrevo primeiramente sobre o desejo, que é esse o verdadeiro motor da escrita: o tesão que faz a gente sair do banheiro direto para o cadeira, ainda pelada, abrir a tampa do computador com pressa e logo despejar a primeira frase: “Ele queria escrever; seu pai não queria.” Foda-se, que a idéia desse começo, a propósito, saiu mesmo de lá, enquanto a água caía sobre meus ombros e o devaneio flutuava em neblinas; em gotas que escorriam pelo vidro do box fazendo loucos caminhos orgânicos, uma trilha para especulações abstratas, mente de artista; pois o escritor é, desse tipo. Gente diferente do pai da gente: advogada, médico, dentista, engenheira e ponto final. É desse tipo de gente que o artista foge, a propósito; tem que fugir.

A regra, o quadrado, o exato; o cálculo, o esquadro, aquela coisa que fazia círculos perfeitos, bolhas que não estouram, eu sou o lápis. Sim, artistas são lápis com olhos coloridos; rabiscamos na neve os mais absurdos arcos-íris e encontramos ouro. Brilha diferente, esse nosso. Então quando esse lápis fura a bolha, de dentro para fora, é um arco iris dourado que cintila nos poros.

É isso o que procuramos. É por isso que ela escrevia, a filha: encontrar diamantes.
‘Mas que diamantes são esses?’ perguntava o pai.
‘Tem que procurar fundo, velho’, respondia a garota e imediatamente e se metia-cavucando no meio das páginas, virando uma após a outra, ora com vidrada lentindão, ora voraz como quem esmiuça um palheiro na busca da agulha, e acha. E acha muitas, pois o artista encontra. Encontra no meio da rua palavras para expressar o cosmo; no metrô o ritmo para expressar a velocidade do maratonista, no balé a ironia para expressar o desconforto da amante apaixonada, e assim por muitos quartos, daqueles tipo Usher.

A gente enxerga torto, desviado, distorcido, adulterado. Pela tinta, pela letra, pelo som ou pelo rosto, o nariz do palhaço te escancara um sorrisão; você tava triste lembra?
Transformação, é por isso que eu escrevo. Transformo rostos. Crio narizes, arranco dentes e faço chorar. Sou um mutante azul e espinhoso; noutro planeta passo a voar e em seguida limpo o chão com pés de cinderella.

A imagem vem e deixo fluir, sabe.
Mas o pai não fluía. A linguagem de um era além do alcance do outro; e assim nascia o conflito de mais uma história, um conto cuja professora lá daquelas distantes janelas nos instigara a escrever.

Por que eu escrevo? me pergunto novamente?
Por tudo isso, talvez por muito mais; ou até menos, dependendo da hora, do momento, da liberdade de fazer, do parir sem perceber.
Sim, parir sem perceber.
É isso que faço quando sinto, e não paro.

Formigas tem Pernas Curtas

Foi um daqueles casos cujo intento era outro, mas que acabara como sempre.

É surpreendente quando Nietzsche acerta na mosca ao dizer que as coisas sempre retornam, sempre repetimos comportamentos aprendidos, cristalizados; o eterno retorno de todas as coisas, para-todo-e-sempre. É assustador sim, mas basta observar que a gente o enxerga quase que diariamente.

No caso aqui em questão, o ‘retorno se dá somente no final’; portanto sugiro acompanhar as formigas, personagens principais da história que talvez se mostrem em alguns trechos, ou nas entrelinhas do percurso, mas que definitivamente vão mudar o sabor dos acontecimentos.

Elas estavam lá, por trás daquele balcão, enfiadas num buraquinho atrás da pia, lá no cantinho da parede por onde nem a água é capaz de atravessar, mas que elas, miúdas que só, conseguem, e lá se resguardam para os momentos oportunos, que via de regra são todos os dias em qualquer lugar onde haja comida, especialmente numa cozinha; especialmente naquele dia.

Ninguém as via obviamente. Na calada do fim-de-tarde-de-domingo nem suspeitamos da farra que as bundudas fazem, camufladas por paredes e pisos, e cadeiras e mesas que as transformam em verdadeiros camaleões, sobretudo se o ambiente contribui com meias-luzes e piscantes. O que era o caso, como sempre são os bares; as hipnotizantes casas noturnas que entre o preto e o cinza escuro nos cingem de encantamento, possibilidades e certezas absolutas.

Abraços de Feliz Aniversário, conversas animadas e cada vez mais altas, e um vai-e-vem de gente pra cima e para baixo descrevem o contexto. Uma banda toca no lado de fora e as pessoas entravam para pegar bebidas em geladeiras colocadas nas laterais do ambiente, no melhor estilo supermercado de bairro. Para pagar a conta, era preciso ir mais ao fundo, onde ficava o Caixa do lado direito, somente à frente da cozinha que preparava beliscos que tinham que ser retirados lá mesmo. Os banheiros do lado esquerdo, também lá ao fundo completavam a realidade que aos poucos e lentamente se distorcia. Assim é o efeito inebriante da alegria misturada com cerveja.

Majoritariamente em pé então, e circulando entre alguns buffets distribuídos por todo o interior do bar, as pessoas regozijavam-se com festa da amiga que neste dia celebrava, todos sabiam, quarenta verdadeiras primaveras.

“O Ricardo já chegou?” pergunta a uma colega. “Estivemos juntos anteontem e até que foi legal na casa dele. Curti muito a sobremesa.”

“Curtiu a sobremesa?”

“Sim, muito. Ele fez um mousse de chocolate com raspas…”

“Jura!!! Você passa a noite com o cara e o que tem para me contar é que a sobremesa tava boa?”

“Pois é amiga, as vezes o doce é melhor que o salgado.”

A conversa para por aí, e a breve risadinha que começa a se formar logo se retrai pois o confeiteiro chega, sorridente e baboso ainda acreditando que o prato principal de anteontem fora ele, salgadinho. Coloca algumas coisas sobre a mesa e abraça primeiro a outra, depois a ‘sua’ garota, desejando tudo de bom, um novo ciclo e que tudo aquilo se repita, estou apaixonado. Não fala, mas estica as mãos, alcança o presente e o entrega: uma bonita caixa de papelão com um laço bem feito e uma etiqueta em que se lia: Madame Formiga.

Coincidências à parte, essa história não vai passar de doces, já saquei, reflete a personagem do dia que recebe o mimo, e abre e arregaça os olhos que delícia. Mas modera no agradecimento, basta um breve-beijo no rosto e dá sequência aos afazeres de anfitriã.

Vou deixar as trufas recheadas para mais tarde, lambe os beiços.

E os lambem também as formigas, cuja atenção é mais que plena, focada, aromática. As trufas foram sentidas há tempos e sua intuição lhes diz que é bom ficar de prontidão. Tudo bem que cascas de pão e amendoins, e restos de peru possam servir, mas uma Trufa recheada é bom demais pra ser verdade.

Se beliscam, enviam espiões e vem a confirmação: era tudo o que a aniversariante de fato vira, e em número de oito, e sortidas; e lambem ainda mais voluptuosamente os beiços quando chegam outras informantes, até mais atordoadas pelo auto-controle-auto-imposto pelo propósito de servir exclusivamente ao grupo.

Auto controle a propósito, do lado dos humanos, cada vez mais fora de si. Amigos e amigas e Ricardo, todos já distorcidos por aquela miríade de estímulos, continuam a embaçada celebração. As mesas estão repletas de objetos, celulares, chaves, algumas incautas carteiras; nas cadeiras, marcas de bundas que aos poucos se desfazem; nos encostos bolsas, casacos, e cachecóis que se arrastam até o chão, facilitando ainda mais a empreitada das gulosas de plantão.

O presente, escondido sob essa folia de pertences, foi ficando. Á medida que a festa avançava, também retrocedia, assim são os eventos de Domingo, efêmero-distorcidos: começam rápido, fervem em questão de minutos e acabam da mesma forma, alucinados e dissipando-se.

Ricardo já tinha pago, inclusive. Não conseguira ser nem de longe o rei que imaginara (quiça príncipe), mas conseguiu ciscar por ali enquanto deu; enquanto se permitiu, enquanto ousou olhar para si e não para ela, negando a própria vontade do olho que só queria ver o que ele não devia.

Fechou os olhos então, e partiu.

Ela, como toda boa aniversariante, ficou até o final. Meia dúzia de gatos pingados e milhares de formigas. Os primeiros esperando uma Segunda mais distante. As segundas, na espreita, esperando o Já. Aguardando a postos o doce momento que, sentiam, logo chegaria.

No dia seguinte, a primeira lembrança da festa é a do esquecimento. Enquanto toma água, a rainha-de-ontem hoje só se arrasta e acaba no sofá tentando lembrar pelo menos da metade. Mas enquanto elucubra sobre alguns acontecimentos que ela supunha mais significativos, lembra-se do que menos fora: o presente de Ricardo, as Madames, tinha ficado para trás. Então se deita e vira os olhos meio-lamento-meio-sorriso, e abraça o perene Eterno Retorno; não fora a primeira nem seria a última, ela tinha absoluta certeza, daquelas que o céu é azul, que o que sobe desce, esquecerei mais vezes.

Mas como quem esquece, e perde, sempre lembra que esqueceu, ou perdeu, compromete-se com a saga e corre rumo ao bar. Tinha combinado com o próprio Ricardo, na ocasião do mousse, um cafezinho na segunda a tarde, ah se arrependimento matasse. Mas tinha que ir, e assim traça o plano: pego as trufas no bar, como uma enquanto me dirijo ao café e, chegando lá que delícia de trufas, muito obrigado-beijinho-no-rosto, abraço de despedida e tchau eternamente, adeus confeitaria. Mas como planos são só planos, se desfaz logo de cara, fechamos às segundas.

Parte para o café então, já esboçando as possíveis respostas para a provável e temível pergunta sobre as trufas, como a de que ela mesma abrira a caixa na a festa e distribuíra tudo; ou que as trufas foram roubadas pelo pessoal da banda, ou até mesmo que esquecera (!) de verdade.

Mas optou por dizer que tinha comido uma delas, qual?

A Madame recheada, claro; suculenta e meia amarga. Chutou com um sorriso e acertou na mosca. Mas ele sorri também e o dele é de verdade. Ela sente a discrepância entre esses sorrisos e ligeira pede os cafés para diluir um pouco um desconforto que, se para ele ainda inexistente, para ela sufocante: mentira e se dera bem, mas o que a boca mostrou os olhos tentam desmentir, e assim ela queima a língua para fugir. Engole o expresso sem açúcar e despede-se do confeiteiro com o já previsto beijo no rosto.

Nada como uma noite bem dormida, ou em alerta; fato é que na terça logo cedo ela já está lá no bar para reaver as quiçá-agora-benditas madames. A esperança de que a trufa que simulara ter comido estivesse lá era um alivio dos grandes. Uma espécie de salvo conduto para livres e novos sabores.
Vai imediatamente até os fundos e encontra uma das funcionárias: “Bom dia. Olha, eu estive aqui ontem a noite; eu era a aniversariante e acontece que deixei o meu presente aqui. Uma caixa de papelão, mais ou menos deste tamanho, com um um laço…”

A moça desaparece nos fundos e só retorna após alguns longos minutos; serena e de mãos vazias, deixando transparecer um pequeno toque de ironia num sorriso que pouco se notava.
“Encontraram sim. E foi guardada no Domingo mesmo embaixo desse balcão. Mas hoje, quando foram pegar, já era.”
“Já era?”

“Sim, as formigas. Tomaram a caixa toda.”
“Como?”

“Sua caixa, com o que quer que tivesse lá dentro, foi simplesmente engolida por um mar de formigas. Disseram que havia trilhas de formigas por todos os cantos do bar.”

“Jura?”, e baixa a cabeça. Se vira rumo à porta com um grande sarcasmo-de-si estampado no rosto, e reconhece a ironia do feito. Sai a passos lentos do local, caminha calçadas abaixo, quarteirões e pensamentos à frente e, divagando em doces não comidos, tromba numa fila que saia dum comércio para ela desconhecido. Pede desculpa às pessoas e as contorna, atravessando a rua para o outro lado. Dali mais de longe sobe os olhos e enxerga, olhos bem arregalados, o letreiro do local que diz: Madame Formiga.

Baixa a cabeça novamente e sorri quietinha, mas abundantemente. Aguarda os minutos da fila e entra para ser atendida. No cardápio, as trufas que não havia comido; e outras. E do outro lado do salão, Ricardo, que olhava para ela, sorrindo de lábios fechados com aquele jeito de formiga que sabe o tamanho das pernas que as pessoas tem.

ECp

Exageros de Pandora

Gostosos como são todos os exageros, exagerei. Mas não no começo, quando ia tudo muito bem.

A viagem de ida fora um tranquilo passeio à cidade das flores, seguida de duas saborosas reuniões: a primeira numa confeitaria defronte a um lago, gente tranquila por todos os cantos, filhos, cachorros e gatos, e sorvetes propícios ao sol de inverno que brilhava e aquecia; a segunda, num castelo, verdadeira exuberância, um espaço de aluguel que explorávamos, eu e uma querida colega de trabalho em busca de novos empreendimentos.

A proprietária, atenta às nossas demandas, logo percebe que o que procurávamos talvez estivesse noutro lugar. Ela própria tinha um sítio a poucos quilômetros daí e logo estávamos à caminho para checar o local.
Leveza e bom gosto alinhados a cuidadores-que-cuidavam de verdade davam ao espaço a cara que nos encantava. Uma casa na entrada, um prédio baixo com salas de terapia, e jardins integrados a amplas copas permearam nossa visita que acabou por se estender além do pretendido.

A tarde já ia ficando escura e eu tinha a esperança de voltar à confeitaria em tempo de comprar alguns doces para levar à casa de um amigo-das-antigas que ia visitar.
Por isso, o incômodo. E talvez pelo mesmo motivo que eu tenha me agitado, agitou-se o Pitbull que nos acompanhava com uma carícia que eu fazia, e levei uma mordida, acompanhada do latido, daquelas que só um cachorro desse tipo sabe dar.

Latejo, mas finjo ‘não foi nada.’

Com a confeitaria na cabeça muito mais que a úmida dor que escorria pelas costas da mão e que eu queria esconder, me despedi rapidamente, sujei a maçaneta da porta do carro de vermelho e parti para a gulodice-seja-la-qual-cor, menos sangue por favor.

Chego às 18:00 em ponto na Zout e Zouet e só com as compras dou início ao deleite, salivando: doces, chocolates e o famoso ApfelStrudel da casa. Agora sim estava pronto para dar sequência aos exageros da generosa e azulada tarde agora a caminho de uma imprevista, longa, suculenta se preferir, noite de emoções.

Já estou na casa do ‘samurai’, amigo de longa data, agora casada com uma Japa de igual excentricidade, numa bela casa também única, ainda que não um castelo, de um condomínio um pouco mais normal da região. Já havia estado por lá antes e sabia que, ao sentar na mesa entre a sala e a cozinha, bate-papos e acepipes prazerosos se estenderiam por algumas, talvez demasiadas horas. Amendoim do pai feito em microondas com muito alho e pimenta, tortas de palmito suculentas e asinhas de frango que grudam no dedo aqueceram o estômago enquanto, e simultaneamente o hidratávamos com latinhas de cerveja, uma após a outra, assim como as trocas de assunto entre grandes e antigos companheiros de aventuras ainda mais estimulantes. Esta obviamente seria mais uma.

Lá pelas onze da noite, resolvo partir, mas não sem antes recusar alguns convites para ficar: ‘dorme aí, amanhã cedo você vai’. Mas como são os exageros, exagerei também na independência: “Não, obrigado. Amanhã tenho que acordar cedo”, típica resposta de quem, não estando bem, logo se prontifica, pelas palavras, a estar.

Quase convencido então, internalizando crenças, abraços de despedida e promessas de ‘volte-sempre’, “claro-voltarei” embarco na barca e parto na escura pista: primeira a esquerda, duzentos metros à direita, siga em frente por um quilômetro e trezentos metros até a rotatória: pegue a terceira à direita, siga em frente por quatorze minutos… waze e eu seguimos como bons companheiros, eu mais atento que ela, e ouço um barulho no pneu traseiro esquerdo. Ela obviamente não deu bola, mas eu, convencido pela crença já instalada, acreditei que era somente uma pedrinha, daquelas que entram no sulco do pneu e insistem naquele costumeiro barulho que alguns motoristas talvez conheçam: tec tec tec tec tec tectectectectec cada vez mais rápido assim como a minha velocidade; quanto mais rápido, acreditava, como sempre acreditei e já aconteceu, que a pedrinha iria embora. Não foi! E a estrada, pixe-ao-luar, me impedia de ver o que deveria ter ouvido: o pneu estava obviamente furado. Mas quando a crença entra, penetra fundo, gruda nos ossos e assume o controle da teimosia, especialmente aquela dirigida a quem insiste em negá-la.

Negando ainda mais então, persisto, pois assim é também a insistência, naturalmente exagerada; e o tec tec continua, mas agora também na cabeça. Estou lúcido, suponho, mas o pneu não; e ele não supõe nada. Em sua integridade de borracha então, começa a manifestar seu desconforto em outros tons: ao tec se assoma uma tendência a puxar o carro para a esquerda, e aquela mão recentemente seca do sangue outrora extirpado pelo querido cão do sítio volta a escorrer e o braço avermelhar; olho para ela, para a breu a minha frente, ouço o pneu chiar um outro som e finalmente me dou conta – mais ou menos – de que pode haver algum problema.

Mas os dissipo imediatamente.

Ao ver a luz, lá da grande estrada, cego novamente e paro, ato contínuo, de pensar bobagens. O carro ainda anda, o pneu continua a reclama, mas o Waze é caixa de pandora; indica: em trezentos metros, pegar à direita e seguir por vinte e três quilômetros até o seu destino.

Quisera, pois percorridos quiçá três, já não consigo mais controlar a besta – sim, o carro virara uma, brigava com o pneu como se fosse uma outra entidade, independente – e, com o volante tremendo e melado de sangue, passei também a suar, vendo pelo retrovisor não a estrada que deixava, mas a frustração de uma aventura cujos indesejáveis e imprevistos percalços adquiriam uma nova estatura.

Me rendo, e no escuro, encosto.
O Tec Tec finalmente vira pisca pisca e eu, sem piscar, entro em modo solução. No acostamento sem luz então, uma densa mata ao lado, do outro pista e vento, me mobilizo para a delirante tarefa de trocar pneu – que já havia trocado à luz do dia numa outra ocasião e que não fora nada legal – as onze e meia da noite, sozinho, cansado e por fim ciente da quantidade de cervejas deixada para trás; e também dos dois, ou três shots de wiskie que tratamos por saideira quando era claramente para eu ficar.

Mãos à obra, foco. Lembro dos treinamentos que dou e que falo de foco: que o foco-isso, que o foco-aquilo, aquele-outro; e agora então é a hora de colocá-lo à prova. Saio do carro e, talvez ainda nutrido por aqueles derradeiros goles de whiskey que potencializavam meu espírito de ‘luta’ ou ‘fuja’, luto. Só não sabia exatamente quais eram meus adversários, que surpreendentemente foram surgindo em etapas, diluindo assim o possível pânico que porventura resolvesse intervir no meu destino.

Assim encarei a escuridão, adversário de peso que, ajudado pela escondida lua e tímidas estrelas contribuía ainda mais para aquele cenário-tipo-dark do que quer que seja.

E então imediatamente me lembrei do amigo que havia deixado para trás; dos tempos em que zombávamos dele por sua demasiada precaução: sempre com uma grande sacola no porta-malas com tudo o que se pode imaginar: cordas, fios, alicates, silver tape, martelo, parafusos, cortador de cinto de segurança, latas com diferentes fluidos, luvas, meias extras, pilhas e, adivinhem, lanternas. Sim, ele sempre carregava uma lanterna, operante – o que significa com pilhas também operantes – consigo.

Achávamos aquilo tudo um absurdo. Mais ainda quando, carentes de espaço para acomodar nossas mochilas e caixas de cerveja para nossas viagens de férias, amaldiçoávamos aquele ‘pessimista’ que por nada cedia o espaço que era religiosamente reservado para suas ditas precauções. “Pode acontecer”, ele dizia.
Agora, quando aconteceu, o otimista aqui sofre, não só de preocupação, mas também de inveja por jamais entender aquele maldito MacGyver que outrora, e agora mais que nunca, tinha razão.

Já eu, sem luz, penava; mas lembrei que o celular tem uma lanterna e, orgulhoso da altivez inesperada, acionei o mecanismo, suposta e metafórica iluminação que nem de longe serviria aos propósitos ali impostos. Sem lugar de apoio, o aparelho, deitado, simplesmente iluminava o céu, grande ajuda. Ao apoiá-lo junto a meu pé, tampouco, pois aí atrapalhava minha já comprometida mobilidade.

Meu primeiro aliado então é meu segundo adversário, e com quem ainda terei algumas altercações ao longo do percurso.

O som dos caminhões passando, em contraste com o absoluto silêncio que vem logo em seguida, aquele de morte e que deixa um rastro sonoro que lentamente se esvai, é um dos outros temores que pousam em mim. Soma-se a isso os velozes faróis que passam voando e trazem consigo longas lufadas de vento, e percebo que estou no meio de um verdadeira e exagerada situação, agora cercado de uma natureza que, de noite e parado – pois estar na estrada em movimento é uma vivência bem diferente daquela de se estar imóvel no acostamento – , se mostra deveras espantosa.

Já o porta malas se mostra amigável; uma aliado.
Pego os equipamentos, macaco, chave de roda e a peça que faz o macaco girar, e sem demora começo a labuta do desparafusamento às cegas. Ora em cima da chave dando pulinhos, ora agachado ou de joelhos no chão, ou deus nas alturas – eterna esperança -, giro como posso, e na medida em que enxergo, os cinco (para mim infinitos) parafusos. Um após o outro vai caindo e pelo tato consigo colocá-los no bolso. E se me perguntarem onde está o celular com a sua lanterna, digo que está lá, ancorado no meu pé direito, meio em diagonal para cima (e sempre escorregando), tentando iluminar o pneu ainda encaixado no carro, malabarismos à parte, dele e meu, pois o legado dos drinks, exagerados que são, perduravam em mim.

Macaco na mão, carro no céu; e um pneu estraçalhado no Chão.
Pego o outro seu irmão, um Continental 205/50 Premium Contact 2 e sinto que estou no caminho. Agora é só colocar o pneu, baixar o carro, apertar os parafusos de volta, e pronto: a luz agora é a do fim do túnel! Mal sabia que era só o começo.

Como encaixar o pneu de volta no carro? Com fazer aqueles cinco minúsculos furos encaixarem na estrutura do eixo? Como levantar aquele pesadíssimo pneu no escuro e fazer o encaixe? Como fazer tudo isso sem luz, sozinho, ainda levemente embriagado e ficando cansado pelos esforços físicos, espirituais, pouco mentais? Nem passara pela cabeça do orgulho ligar para o amigo, a seguradora ou até mesmo a concessionária da estrada. Afinal de contas, pra que não passar perrengue?

Sentei então, mais não chorei. Sabiamente estiquei as pernas para baixo do carro e coloquei o pneu no meu colo. A essa altura, a calça, clara, não tinha mais importância, e ao sentar-me, meus olhos ficaram na altura do eixo do carro, e isso melhorou minha noção de altura. Com o pneu no colo também não precisei fazer muita foça para levantá-lo e colocá-lo no lugar. Um perrengue de fato, mas deu certo.

Sobre a pernas que eu deixara embaixo do carro enquanto fazia o encaixe, correndo o risco de te-las esmagadas, não me importei. Tinha plena consciência do que fazia, mas por alguma razão me pareceu adequado prosseguir; e tinha também outra certeza, daquelas absolutas, pleonasmos à parte, que o macaco aguentaria.
Pneu posto no lugar, agora é apertar os parafusos, baixar o carro, apertá-los um pouco mais, guardar o pneu estragado no porta-malas e ir embora; tudo como manda o otimista figurino: um final feliz e a cabeça no travesseiro, dormindo pesado o sono dos justos.

Mas como que despertado de um pesadelo, assusto com um novo trepidar. Uma enorme cegonha passa a centímetros de mim e ofusca momentaneamente a realidade da situação: não baixei o carro, não apertei o parafuso, não fui pra casa e o único sonho que sonhei foi o delírio da dor que me apagara.

Ao finalizar o encaixe do pneu, e antes que pudesse trazer as pernas de volta, ao menos uma delas, eis que o aliado macaco cede, sem as costumeiras graças da espécie. A dor é dilacerante, mas não a ponto de me fazer apagar de novo. Então sofro, e somente, e agora irônica e religiosamente sóbrio. Respiro fundo, o yoga fala alto e tento não me desesperar. Mas a dor é quase mais que suportável, e aperto a mandíbula, ranjo os dentes, lembro de Elisa.

Minha mão, a essa altura do campeonato era uma das coisas que melhor me restava, e coloquei-a à obra de imediato, para tentar achar o celular. Eu estava meio que deitado sobre o ombro esquerdo, de lado, a perna esquerda lá embaixo e a direita encolhida, mas o tronco direito estava operante. Assim localizei o celular, ainda aceso, iluminando o céu, doce ironia. Era de lá mesmo que eu precisava de auxílio, uma luz no sentido contrário, talvez, pois as de baixo vindas dos caminhões não faziam nada além de cegar-me. E a eles também, pois tampouco me viam.

O medo real de ter a cabeça esmagada dissipa momentaneamente a dor, e passo a sentir, a cada passagem de veículo, o cheiro da sua borracha queimada e o trepidar do mundo que incontrolavelmente assomava ao meu pulsar. Eu estava todo esticado e minha cabeça exatamente em cima da faixa que separa o acostamento da pista!

Mas como temer sobre o que nada se pode fazer a respeito é perda de tempo, dizem os especialistas, foco na luz e alcanço o celular, àquela altura, simplesmente um Deus. Colocaria-o em minhas mãos como um Graal se fosse o caso, mas com uma delas imobilizada, contentei-me em apertar o botão que o despertaria. Confirmações de subjuntivo, o celular não acordou. A chave de roda caíra sobre ele durante aquele caos e o home-button simplesmente se negou àquele possível, salvador último suspiro.

Fiquei sem ar. Recuperei. Relaxei.

‘Alguém há de me achar aqui’, penso. Mas vi também, ou desconfiei de uma poça que se formava abaixo da minha perna presa. Em outras e mais corriqueiras circunstâncias talvez achasse que era somente o óleo pingando do motor, aquela mancha escura no chão. Mas não dessa vez. Alguma parte do carro, alguma ponta deve ter baixado bem em cima da minha coxa. Estendo o braço e sinto um corte-curto, mas profundo. Sei disso pois, não sentindo esta perna, e na ansia de acessar minha escancarada condição, levei a mão ao machucado até onde se podia, e lá se foram 4 dedos.

E desmaio novamente.

Não se sabe ao certo o tempo do sonho, mas o da dor pode ser infinito. O novo despertar então vem junto com uma outra agonia, talvez até pior que a primeira, pois pareço sentir meus ossos. Olho com aqueles olhos de quem não quer ver e, além do sangue, reconheço aquela cor de marfim que aos poucos perde o brilho e começo a ver elefantes; sinto que estou caindo no abismo do colapso novamente, mas dessa vez não deixo. Das lágrimas que me embaçam os olhos e agora me escorrem queixo abaixo, foco (lembram do foco?) e mando tudo para a puta que pariu tentando me acalmar. Já sei que estou inequivocamente, irremediavelmente ferido. Já sei que provavelmente vou perder a perna e literalmente não há nada a fazer. Mando à merda também a velha Pandora de quem agora estou com o saco muito cheio, e relaxo fechando os olhos de propósito. O dia vai clarear e finalmente uma luz vai me ajudar; e assim perdo Pandora, e sorrio.

E adormeço novamente. É inútil brigar com inimigos que nem inimigos são, mas simplesmente parte-de-você que age independe da vontade consciente. Vontade, a propósito que minha perna nem tinha mais. Tinha adormecido totalmente e com ela minha dor; e juntos sucumbimos à natureza da fadiga e entramos no modo esperar-para-ver-no-que-vai-dar.

Um toque no meu ombro me traz de novo à realidade, mas continuo de olhos fechados. Era difícil acreditar que não estivesse mais sonhando, ou indo e voltando daquele eterno Dante. Queria simplesmente que acabasse, assim como a dor que simplesmente adormecera. E eu já estava dormindo.

Mas Pandora retorna, e por linhas invisíveis abre meus olhos de cílio-em-cílio e me faz acordar. Ouço barulhos que não o dos caminhões, dos tremores ou do silêncio, mas vozes. Algumas lá longe, outras aqui, outras pano de fundo e sinto que agora, somente agora – como a gente se engana a respeito do tempo! – cheguei no final do túnel, onde uma luz vermelha paira sobre mim e gira, e gira, e gira.

Pássaro em construção

A gente nunca sabe quando alguém vai enlouquecer; e a gente sabe ainda menos se esse alguém pode ser um amigo, uma amiga, um conhecido nosso. É sempre uma surpresa extraordinária, um ‘uau’, um ‘não acredito’ ou ‘quem poderia imaginar’. Mas o fato é que essas coisas acontecem quando menos esperamos e sempre nos deixam meio que esquisitos, pensativos, ‘olha só’, ‘mas justo ele?’

Pois é. Aconteceu comigo. Não que eu, pessoalmente tenha enlouquecido (se bem que poderia, do dia pra noite, como já aventei a possibilidade e como verás logo em breve), é claro, mas alguém muito próximo de mim.

Foi lá em Gonçalves, terra onde nasci, quando tinha ainda meus nove ou dez anos e vivia a caçar passarinhos, prática herdada primeiramente de vovô que por anos sempre vi sair após o almoço para caçar pardais. Ele e seus amigos semanalmente saiam de arma na mão, como guerreiros em missão de vida ou morte e voltavam somente a noite, ora felizes, penas saindo de baldes, ou carrancudos, penas em seu devido lugar, nas asas. Na época eu ainda estava sendo fisgado pelo habito que, a propósito, hoje considero hediondo.

Quem o adquirira ferozmente foi papai. Tão logo o pai dele morreu, assumiu o posto e passou a caçá-los, agora quaisquer que fossem, com tamanha avidez que algumas vezes cheguei a vê-lo dançar no pasto, tamanha a felicidade com a campanha exitosa.

De noite no jantar sem penas, comíamos em silêncio uma fartura de carne alada, agradecendo aos céus pelas habilidades extraordinárias ao meu pai concedidas na arte da pontaria: atenção, silêncio absoluto, imobilidade, POW! Seguido do tiro, um outro silêncio , agora cavernoso, um susto paralisante sentido por todo mundo que estava alí, inclusive eu. Era uma adrenalina difícil de descrever: um disparo seguido de morte, mistura posta à mesa.

Cresci, e do estilingue passei à espingarda. Caçávamos juntos, meu pai e eu. Jamais podia imaginar que a prática fosse fortalecer minhas asas com ele. Mas entendi rapidamente que a guerra faz isso com as pessoas: entrincheirados viram irmãos de sangue, caças voam lado a lado e paraquedistas caem juntos, quase como pássaros, só que estes sempre mortos.

E foi a partir dessa ponderação que comecei a ficar incomodado com esse laço de matança que me ligava a papai, matador. Eu era de outra geração, via o mundo um pouco diferente, muito pela escola que frequentava, e percebia de alguns colegas olhares tornos; ouvia com esforço comentários disfarçados sobre mim, sobre um hábito que o tempo transformou, agora simplesmente inaceitável.

Dessa forma o laço arrefeceu. Cada vez que o via sair para caçar, sumia; ou, como um pássaro arisco, bastava ouví-lo mexendo em suas coisas, inventava um milhão de outras pra fazer e me ocupava com o que quer que fosse: banho que não gostava, tarefas da escola que protelava a todo custo e até mesmo a louça que mamãe implorava há anos, fazia questão de lavar, brilhar, secar, guardar.

Papai, ainda que desconfiado da minha mudança, não mudou. Pelo contrário, rotina na cabeça, pensamento fora dela. Não que minha ausência não lhe tivesse trazido algum desconforto, afinal eu era sim uma boa e útil companhia, mas o ajuste à pratica da solitária caça foi rápida e em questão de semanas ele já estava novamente voando solo. Acordava cedo, coisas arrumadas desde a noite anterior, ciscava algumas migalhas, e sem dar pio já voava porta afora em busca daquilo que a mim e mamãe começava a parecer, no mínimo estranho. Vestia penas. Camuflagem ele diria.

Quanto mais pássaros abatia, mais se tornava um.

De tanto observá-los compreendeu sua dinâmica. Entendeu como dormiam, descansavam, jeitos e trejeitos. Previa o destino do voo a partir do horário da decolagem, e precisava milimetricamente o local do pouso pela velocidade do vento naquela hora do dia.

Em termos de vontade, sabia até o que os pássaros queriam, seus desejos mais íntimos, amores e sexuais. Seus pios tinham significado sim. E ele os traduzia. Numa folha de papel passou a anotar os significados como que em código morse, e a partir daí a comunicação ficou mais fácil.

Assoviava todo dia. Acordava assoviando, ia dormir no assovio. E mamãe me relatou certo dia que até durante o sonho ele assim o fez; tínhamos a impressão de agora conviver com um enorme pássaro dentro de casa. Já não falava mais, ao menos conosco.

Mas uma vez fora de casa, era pura cantarola. Emitia sons para mim e minha mãe indecifráveis e, a partir de certos sinais vindos de outras laias, saia correndo e abria os braços como se asas fossem e seguia seu caminho rumo a rumos por nós também desconhecidos.

Pouco a pouco, grão a grão, o cordão umbilical um dia asas, depenou-se.
E tivemos que colocar papai no caldeirão.

As Tranças e a Lei

Ela queria, ela podia.

Se tinha tinta, pintava. Depois emoldurava.
Pregava na parede da cozinha, torto.
Se papel, escrevia; se grafite, apagava; se caneta, eternidade.

Se tinha dinheiro no bolso, viajava, e lá, gastava, comia, restaurante, massa; vermelha.
Se taça, vinho. Copo, cerveja. Copinho, tequila em shots que também gostava.

E se homem tinha, sexo. E assim, gozo.

Se sim, ótimo; se não, de modo algum descanso.; pelo contrário: ‘finaliza, porra!’

E de vontade em vontade, queria, podia e fazia. Acontecia.
Foi assim por trinta anos, inclusive na faculdade. Fez o que quis, contrariando pais, amigos, irmãos e conselheiros de rua, amigos de bar, coaches de toda espécie, orientadores vocacionais, lembra?

Fez torto o Direito, pois lá a vontade não era mais a própria. O papo era coletivo, meu direito pra cá, o seu pra lá, o nosso, o vosso, senhor nas alturas o excelentíssimo.
E assim seu nariz foi aos poucos envergando. O ar que era só seu começou a ser pouco e ela deixou de querer-poder-fazer: o ar tinha que ser compartilhado, respeitado, inalado, expirou-se;

e fedeu.

Queria, petição.

Podia, não!

Fazia só o que lhe mandavam pois era esse o script do contexto: ‘aperte o botão’, ‘comece da esquerda pra direita’, ‘use terninho azul escuro’…

“Mas eu quero é fazer tranças.
Tranças coloridas, grandes, grossas e finas, de diferentes tamanhos, modelo afro-transgressão, até a bunda, talvez até passando dela” ela dizia.
“A cabeça é minha, o cabelo é meu, trança-lo-ei.”

Talvez fosse a forma dela preservar o que com o tempo havia perdido, não se sabe ao certo. As vísceras eventualmente vem à tona; e as dela surgem como tranças, extensão do seu poder-de-ser, livre arbítrio, que ironia termo tão usado no presídio.

De qualquer maneira, era no emaranhado do direito que ela queria desamarrar os sapatos, o laço do sutiã, queimar a calcinha, vermelha enfiadinha, e jogar na cara do excelentíssimo chefe, seu cheiro.

E quando ele, assustado, viesse com sua ladainha, ‘que porra é essa’?, jogá-lo no chão e estuprá-lo com vontade, com palavras, palavrões a abrir-lhe as entranhas com outras verdades, arrancando-lhe a máscara da normalidade e dos padrões excruciantes que nos fazem vomitar e despindo-o totalmente da moral reinante, paralisia cerebral disfarçada de gravata, bravatas infernais.

E assim o faria, em tempo.
A cabeleireira já estava avisada, tranças a caminho.
E no embaraço das cores por vir estava um camuflado pente de balas que dizia: ‘o dia de chapinha está preste a acabar.’

Discurso e Postura

Ele falava e os outros escutavam. Bastava abrir a boca e lá estavam dezenas, se não centenas, talvez milhares a postos para receber o seu discurso essencial. Os bichos se calavam: a cigarra parava de cantar, as formigas de trabalhar, o leão de ser caçador, sentava. Apaixonadas zebras vestiam de volta suas listras, os sapos se descolavam e as araras de eternas mãos enlaçadas se soltavam brevemente para contemplar aquele som ao longe, um canto.

O ambiente se aquietava para escutar; as folhas paravam de balançar como se o vento tivesse deixado de existir, o rio agora estava calmo e os peixes só nadavam na corrente, nunca contra, mas fluindo; nas margens descansavam os já imóveis jacarés, crocodilos e afins do meio sol, que este também resolvera se acomodar por entre leves e vaporosas, ralas e espaçadas, lânguidas nuvens que se desfaziam à menor moção da preguiçosa brisa.

A natureza estava estática assim como as pessoas nela residentes; todos ao dispor do movimento corporal e labial daquele que tinha o feitiço em mãos: a comunicação. Sim, a magia do formato da expressão, aliada ao conteúdo relevante do momento. & Plim, e todos estão lá boquiabertos na espera da enxurrada cativante, das palavras, das pausas engenhosas, do volume, do teatro das caras e caretas e dos gestos calculados que culminam em ovação.

Por fim o herói respira, satisfeito. E ao entoar o seu silêncio final, baixando a cabeça em reconhecimento, devolve os movimentos ao mundo que em hiato o esperava terminar: as folhas balançam, as nuvens voam à luz da brisa desperta e as zebras definitivamente se despem das listras; os jacarés mexem um músculo e a borboleta voa.


E Axl, o idoso protagonista de O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishguro, elucubra sobre uma ‘solene’ fala do cavaleiro salvador, no ‘grifo’ acima citado. Um trecho que nos provoca sobre a valor da prosa exitosa, aquela que nos congela e que tira do lugar, nos aquieta, nos altera a memória, faz pensar. Aquela que transforma a Ficção em REALidade.

A Escolha do Talento

E por que acha que o violino é o instrumento certo para você?


A resposta a esta pergunta, no livro A PARTITURA DO ADEUS, de Pascal Mercier, é “Eu sinto isso”, o que retrata um pouco a personalidade da enigmática e absolutamente inesquecível Léa, cuja trágica jornada é relatada com estonteante maestria pelo autor.

O tema da narrativa é diverso, indo desde o processo de luto até o incompreensível e talvez exclusivo amor de um pai por uma filha. O Violino aparece como elemento central, e dele e de seu contexto partem reflexões sobre o apego, as perdas, habilidades, talento e virtudes. É aí que surge a ‘mestra/professora’ que conduzirá a ainda pequena Léa à fama; ao estrelato, incontrolável, perigoso, devastador.

E tudo começa com a identificação do tal ‘talento’ tão necessário ao sucesso, tão desejável, sedutor, implacável. 


Assim como qualquer ofício, tocar violino requer prática, muita prática, horas e horas de incansável repetição até o desabrochar da perfeição: talento criado, crescido, não nato. Como nosso querido Mario Sérgio Cortella costuma dizer, “não nascemos prontos e vamos nos desfazendo; nascemos não prontos, e vamos nos construindo.”

E o mesmo acontece com as habilidades que ‘escolhemos’ desenvolver, ou como no caso da nossa querida personagem, ‘sentimos’ que devemos desenvolver. Seja qual for a forma para se chegar à perfeição, é preciso cuidado pois, além de libertar, o precioso também escraviza; cria dependência, intoxica e pode matar.

E a Ficção aqui nos ensina a ponderar; a entender que a Realidade pode ser bela, ainda que mediana.

Profundidade de Pensar

Assim ele mergulhava de cabeça.
Não tinha essa de colocar o pezinho, um dedo após o outro, ai que frio acho que não. Não tinha essa, vou com tudo e até o fundo.
Assim ele fazia, sempre o fez, faria todo o sempre.

Entrava dentro da espessura, com ou sem equipamento, cavava. Com as unhas arrancava a primeira pele; logo os dedos como garras arrancavam mais insumos, e com mãos e braços enterrados na areia faz jorrar um sal molhado que ninguém mais vê; são só ondas aos surfistas, paisagem ao turista, cenário ao pintor emoldurado.

Para ele não; ao entrar mais dentro na espessura, era tubo: Pipeline do infinito, conexões tigre e um avanço de mil léguas subaquáticas.

Era telescópio enxergando para dentro, que o saber interior leva a buscas colossais. Para fora é exploração, é trator escavadeira, cientista, pescador. Com o pé no brejo ou o olhar no microscópio, microcosmo vira macro e a minhoca é agora a nutrição do próximo milênio. Um virou bilhão e até o cisco é reciclável, tava lá no meio da espessura.


Entrei, rachei a madeira ao longo. Escancarei o livro e lambi com entusiasmo cada uma das suas milhares páginas, doces como mel, migalhas com manteiga açucarada que são letras ao padeiro, tijolos da construção. Argamassa colando linhas, parágrafos adentro e viro uma densa história narrada; e o herói segue adiante comendo letras, engolindo vírgulas, ruminando exclamações… não há pontos finais, só petróleo cru jorrando de poços quiçá um dia artesanais, que depende da Jornada.


É longa, não se prega o contrário, e ele vai. Na pele do Sr. Ulme, retratado no belíssimo romance Flores, de Afonso Cruz, mesmo desmemoriado ele segue pregando a máxima: “Entremos mais dentro na espessura” e instiga, a nós a refletir. Da tabula rasa já excedemos, penso, mas para existir no mundo de hoje é preciso ir além da densidade.

Talento & Genialidade

Schopenhauer disse isso, não qualquer um.

E a citação está na fabulosa biografia de Leonardo Da Vinci escrita por Walter Isaacson; não por acaso, dado que ele via além do alcance; sobretudo além do alcance dos demais, nós, humanos, mortais.

Pois ele então não morreu?
Sim claro, ser que era.

E errou também, a boa mira lhe faltou. Muitas vezes sem ao menos saber do ponto, lançava a seta. Imaginava que o alvo. Imaginava que lá, tenho pontaria. E tinha. Entre erros e acertos, só colhe o que planta, quem não investe, prejuízo de isenção.

Mas disso não sofria. De cadernos em cadernos, folhas mais desenhos, anotações relatos, questões, elucubra, sugere, da dica, da dica outra, emenda, no cantinho do papel, espremida Monalisa… transpira, imagina, até disseca, ação.
Da perspectiva à ótica, dos cabelos cacheados à quadratura do círculo, o Homem Vitruviano. 
Da água em movimentos, redemoinhos louros. Da observação extrema, dos movimentos dos olhos ao profundo significado do gesto, Leonardo fazia do retrato narrativa, do estático explosão, e procrastina. “Criação tem o seu tempo”, ele dizia. Como ver sem pacatez?

Contemplar é vislumbrar; apreciar o que ao outro trivial. E assim, na mosca. 
No sfumato do futuro tinha a mira. Ninguém via, alguém tentava?

Ao estudar obsessivamente, por-saberes alistados e detalhes flor-da-pele, uma mão canhota produziu no papel o inusitado, inesperado, nunca visto ou almejado.
Sem o alvo disparar? Assim ele o fazia. Tinha a flecha, e a pena, o pincel. Pintava o gol e chutava com a força de cem anos, duzentos adiante, uma peça de teatro tantas vezes ensaiada, quem sabe um dia pronta.

A Performance de Leonardo chegou, chega todo dia, e mostra que o trabalho exitoso independe da REALidade, pois é também na Ficção e na fantasia que se cria o impensável.

Propósito e Alma

Difícil achar melhor exemplo de propósito do que a determinação de quem profere frases como a supra mencionada.
Trata-se de um russo, compositor, ameaçado pelo pervertido comando de Joseph Stalin no período da 2a. Guerra Mundial, um pouco antes, durante, pouco depois.


Mas nada detém o músico, seu movimento é visceral, vem da alma, vem dos ossos, da falange-falangeta-falanginha e uma harmonia de encaixes. Eles tem cintura, dançam habilmente e discorrem sinfonias; histórias embaladas por dedos que imploram por papel, tinta que nunca acabe que é alma jorrando em preto. E no branco, entrelinhas e em plena euforia criativa viram símbolos, notas de emoção, coração e lágrimas tamborilando.

Do, ré MInhas mãos são elixir da gestação; fa, sol LÁ se vão horas, dias, meses transpirados, calos; si, DÓi. Machuca, fere, exaure o processo da intenção, que dele brota o filho, o vinho do ‘luar’, Guernica e as 4 Estações; a 5a. de Beethoven, Monalisa e a Capela Cistina a rogar olhares ao céu, abençoados.

Dedos e Deidades então se fundem na batuta do maestro e valsam instrumentos que conversam entre si; trocam tons, toques e namoram violinos, trompetes que se beijam e flautas que se adulam, adocicadas.
É de lamber os dedos. É de brilhar os beiços; de limpar com a língua o desejo essencial que escorre pelos braços. É tesão que se produz com mãos tão desejosas que se recusam em se entregar: “que me cortem, arrumamos aliados”.

E assim nosso protagonista, o dono das referidas mãos em apuros, desafia Stalin e seu terror no formidável “O Ruído Branco”, de Julian Barnes, uma semi-Ficção que retrata, além da cruel insanidade daqueles tempos, a força do propósito e o puro amor à arte como elementos essenciais à voz, que jamais será calada, nem que para isso eu tenha que “continuar a escrever música com uma pena na boca,” minha eterna imanente.

Imagem e Ação

A reflexão aqui proposta diz respeito à FAMA e a REPUTAÇÃO que moldamos ao longo da vida, e ao cuidado que temos que ter com o que construímos ao longo do tempo; o custo de uma reputação mal edificada pode ser altíssimo, podendo, inclusive arruinar promissores futuros.

No caso do grifo citado, um sólido empreendimento pode estar à beira do fracasso, dada a óbvia relação entre o bem vendido e o infortúnio do proprietário que se torna ‘corno’. Ainda que a traição sofrida não seja de sua exclusiva responsabilidade, o ‘residual’ do fato pode ser, e comprometer significativamente uma imagem anteriormente ilibada.

De qualquer maneira, é preciso tomar muito cuidado com a imagem, pois ela denuncia. E ao sermos denunciados, carregaremos o fardo.

Por isso, a confeção deve ser bem trabalhada; os fios bem tecidos e a estrutura sólida para que a arquitetura e o design brotem, belos e duradouros. Só assim o chapéu vai conseguir cumprir seu verdadeira ofício: proteger, decorar e atribuir valores a cabeças comprometidas com o futuro, âmago de uma possível notoriedade.

A SOMBRA DO VENTO é um livro poderoso e cheio de ensinamentos, onde os personagens, cada um a seu estilo, dão a sua mensagem. E cabe a nós captá-las. É a Ficção na sua mais pura forma instruindo realidade.

Talento & Detestar

Assim, ano a ano, a cada dia odiava mais. Odiava a comida, odiava o marido, sua cidade, seu trabalho. Detestava o sofá, o buraco do sofá, o gata que o rasgava, insuportáveis unhas de Fifi.


Se aborrecia com a colega do escritório que insistia em tirar os sapatos durante o expediente, meias furadas, unhas sujas e azedo de chulé.

Detestava o cabelo na sopa. E quando o via, escândalo: xingava o garçom, pedia pelo gerente, exigia o proprietário e uma indenização. E nunca mais eu volto aqui nessa pocilga.

Execrava desconfortos.


Enlouquecia com a hora perdida; a sua, dos outros, de quem quer que fosse, que o tempo hoje, ouro por minuto e não desperdiço nem centavo.
 Odiava perdas, e quando era rejeitada então, maldição que a morte lhe feria; uma fera que nascia e agora um morder de correntes adiante, dentes à mostra e cara de fera cuspindo lava, lenta e intensamente.

Quando o macarrão passava do ponto, ficou mole xingamento e joga fora.


Quando errava o caminho, mesmo tendo o mapa, forca ao arquiteto, engenheiro, construtor. Bando de idiotas, me perdi e a culpa é sua. Sempre sua, nunca dela. 

Que também nunca esquecia. Se perdia além da hora, coisa, era o outro, sempre imprestáveis empregados, ajudantes, descuidados assessores que me deixam olvidar; culpados que os detesto.


E também os que me vencem, na corrida, na disputa, tabuleiro ou vídeo game, abomino a mil forças a derrota até no coito, que pra mim é só por cima. No oral renego o seis, cachorrinho sou o dono, mamãe eu sou papai.
E que não broxe por favor; macarrão que perde o ponto é papinha de anciã, e malquero envelhecer.


E assim, com o tempo, aprendeu a detestar; não que fosse assim feliz, pois sabia que a ruindade lhe feria o semblante. Mas assim o era atualmente, carrancuda dos pés à cabeça, rabugenta de alma, a cada aniversário, de presente um novo asco.


Mas agora chega, decidiu. Entendeu que o tempo a corroera e optou por mais sorrir, admirar ao invés de reclamar e re-habituar, co-habitar com mais leveza, consigo positividades. 


E assim se deu o renascer: dela, do marido, da colega da meia furada, do sofá que virou arte, do macarrão agora percebido sempre ao ponto. O tempo agora é relativo, as pessoas são legais e aceito até perder; fico até por baixo.

A REALidade é a forma da Reação. E detestar jamais talento. Renego o grifo então, e volto a ser criança, que o tempo jamais me estragará.

Com o Peixe, a Gestão do Tempo

Não seriam então os Peixes o maior e melhor exemplo de uma boa Gestão do Tempo?

Eles nadam, flutuam, navegam submersos e respiram a seu tempo. Comem, vão adiante, ágeis. Desejam, procriam a seu tempo, sem perder. E quando a hora é grave, se escondem, ou se juntam, a seu tempo. Tudo no momento.


Com a corrente fluem, sem pressa deixam-se levar, poupam energia se precisam, sábios pra que luxo?


Mas quando é vida ou morte, ou a questão perpetuar, partem rio acima, sobem correntezas, enfrentam cachoeiras e pronto: cem novos peixinhos, já sábios mamãe nos ensinou a natureza é sábia, não adianta acelerar, no fundo já sabemos!


Tempo tende ir, tem que vir; parar ou navegar, emergir, respirar, bolhas temporais. Nós, no mundo dentro delas, ‘embolhados’, da bolha do tempo não ousamos escapar; bastaria um alfinete, de dentro para fora, estoura! Mas não, alfinetamos para dentro, sopro-de-seringa ampola-temporal, criação de tempo, mas tempo não se cria (!!!) seringa auto-engano.


A bolha é uma só, o peixe sabe disso, e fluxo; escorre pelas mãos, as nossas, pelas do anfíbio não, que sabe estar envolto pelo timing das marés e respeita o fluido.

Nada com a água e nela nada. 
E assim é também na terra do Sudeste Asiático, Camboja (centro da narrativa de Miss Camboja, divertido conto de Geoff Dyer), onde o principal e mais tradicional meio de transporte de lá, o Cyclos, não necessariamente leva os turistas a algum lugar, mas definitivamente percorre… eflui no solo, como “os peixes em sua imperturbável falta de urgência”.

Ou calma, como queiram; uma REALidade subaquática… silenciosa… que nos apresenta uma quase-Ficção mais morosa, suposta bem mais lenta, onde a pressa por decerto não existe.

Relativizando o Crescimento

Ah, que saudade dos meus quatro anos, bons tempos, tempo que sabia, tudo. Até ensinava, juro, dava conselhos, apontava defeitos, via com uma clareza, olhos límpidos, descontaminados, cristais de transparência tudo a enxergar. Era só me consultar e lá estava a resposta, um Deus de cinco anos bem vividos, xixi na cama, cocô na calça mas tudo bem, fez parte ajudou-me a ser quem sou. Hoje formado pela extensa vida, tenho pleno conhecimento de tudo e todos, sou criança-adulto, sessenta meses.
Pai e mãe ficaram para trás. Tios e Tias, o que dizer? Avô, Avó… paciência, tenho também tenho muita… ensino. Ensino a mexer no celular, computador, ligo a TV, desligo, controle remoto, eu sou o controle, mando e desmando, quero, deixo de querer, deleto; eu sei o que é bom para mim, deleite!
É preciso avançar, os anos passam muito rápido e já não tenho muito tempo, amanhã eu faço seis, rugas… 
Então avante, querem me seguir? Pois bem, ‘To infinity and beyond’, não sou Story, muito menos Toy, que a vida é séria, quiçá o meu país, vou me candidatar a presidente.

Uma fábula, não?! Talvez, talvez não, a cabeça da criança a gente nunca sabe, acha conhecer, supõe. Mas aos seis anos a certeza é soberana, sei que sei, você não, ou até saiba, mas seu tempo já passou, o meu é que fica.
Meus dedos são mais ágeis, sou mais rápido e até ajo por impulso, posso. Erro rápido é o mantra do contemporâneo, e erro… e logo já vão sete, eternos-sete-aninhos da mais pura ‘REALidade’… … que no QUARTO, assombroso livro de Emma Donoghue, é a vida de Jack, um menino enclausurado que, sem opção, tem que saber. A vida é lá, 9 metros quadrados de um mundo onde a Ficção salva; vira verdade com a ajuda de uma super mãe que questiona a absoluta certeza de um final provável, e muda o rumo da história.

Comunicação não verbal e a questão do Olhar

Olhe, você está sendo visto! Olhe para mim, que estou olhando para você. Retorno o teu olhar, a ti importo então; e você a mim significa.

Trocando olhares nos assumimos um ao outro e estabelecemos uma conversa-olho; se não sabem, o olho fala, e deveras, muitas vezes mais do que palavras, outras bastam por si só e descartam seu contínuo, o outrora necessário algo a mais, e congelam você num piscar de olhos. Quando vê, já ouviu; fecha os olhos, e não mais. Um silêncio escuro toma conta de você, cego de cera.

Volta a abrir, e ouve. É na empatia dos olhares que a conversa vem adentro, escuta ativa e escuto a a ti; reconheço no outro um outro eu, semelhantes somos aptos de nós.
E decibéis. Ou débeis; enfermas línguas, loucas bocas a falar em disparada, tímpanos exaustos, por favor, me deem um tempo: ‘basta olhar que eu já sei’. ‘Minha mãe olhava eu já sabia’, olho no olho, e uma imagem vale mais que mil palavras, é a janela da alma.

E num recém descoberto PLANETA, o humano de lá grunge, bicho que é. O humano de cá fala, incompreendido; os sons não se conversam e os gestos assumem a forma das possibilidades de diálogo, infrutíferos. “Nenhum lampejo de compreensão iluminou a sua Íris”, pondera Ulysse Merou, o principal personagem de O PLANETA DOS MACACOS, sobre as diversas tentativas de troca com a bela selvagem do distante habitat.

“Por fim olhei para seu olhos…” Mas não adianta: “… seu olhar não simpatizava com o meu.” Era a REALidade de uma Ficção distópica hoje bem concreta: a dificuldade de entender e ser entendido, expressão; e nas páginas desse fabuloso romance atemporal aprendemos que a comunicação, seja ela oral, gestual, visual, pode ser questão de vida ou morte.
Não é mera macaquice.

Criatividade e Inovação

E você, como interage com os outros? Sai, vai falando, se joga conta tudo? Fala pelos cotovelos, mostrando vitórias, contanto conquistas? Sua voz é aquela que sai pelo ladrão? Fala de televisão, do outros, esgoto e de si um montão? Não tem imaginação, é preciso a vida alheia, o assunto não sai, falta termo, e agora, sobre o que vou falar? Tem uma festa hoje, outra amanhã; a propósito, vai chover, você viu? Nem pensar ir ao cabelereiro!

E assim fluem as conversas típicas de gente comum. Mas não a do nosso querido Sherlock Holmes. Somos uma outra espécie. Enquanto uns falam, aquietamos, falar para que? Pensamos, nos aventuramos em nós mesmos. A mente, acima de tudo, pensa, se deixar, viagem intergaláctica, de repente ao centro da terra, ao fundo do mar, 20 mil léguas submarinas.

A imaginação rola solta no pensamento do quieto estranhamento; ele pensa diferente, enxerga de outras cores, até inexistentes, flutua fincado no chão, rasteja vira cobra cor de rosa dançando no salão. Se levanta, se transforma, já é um novo. Quando lhe dão corda, comunicação, se não, boca-cola com durex, auto-sugestão, melhor eu comigo, já tô notra dimensão, sacô rapá. Agora inclusive já sou outro; da perífa, tá ligado?

Tô. Calado falo. A propósito, Falo que não cala; taí mais uma abstração. Engraçado esse silêncio que não cala no papel, ao contrário, berra, cospe, jorra. Teclas que falam pelos dedos de uma Ficção inventada. Uma Ficção na REALidade que sugere não o silêncio, mas uma comunicação outra, anormal, zunzunzum num outro tom.

Comunicação Cega (?)

Em tempos de luz e eletricidade perene, o que faria você sem luz, por 4 horas diárias, durante 7 dias? Aguentaria, enlouqueceria? Você verdadeiramente ‘dá conta’, como muitos falam?
Abaixo, um texto inspirado no conto ao qual o grifo acima se refere.



No escuro, sem outro estímulo para atrapalhar, TOCAMOS; e ao tocar, sentimos, a mão, os dedos, cada dobra, falangeta, falanginha, o envelhecer do tecido-rugas. Ou a juventude da pele ainda suave. Movimentos, pressão e cadência no tato, talvez um aperto de mão. No escuro cada toque toca mais; o carinho no breu arrepia, unhas enlouquecem sem cor.



No escuro, sem outro estímulo para atrapalhar, CHEIRAMOS; e como cheira bem o aroma na sombra: a fruta descascada, o legume, a folha picada. Tudo junto misturado, na panela que ferve, tampa aberta e uma nuvem invisível de essências… As ervas, nariz ampliado, a seiva da mata, o capim, tão belo ao sol, melhor ainda obscuro, cheiro de mata molhada numa noite sem estrelas.



No escuro, sem outro estímulo para atrapalhar, SABOREAMOS; o lábio sente suave a primeira textura, salivamos ao toque da comida que mecanicamente se entrega. Conhecemo-la pelo toque da boca, lábio agora molhado, melado. Mordemos, ossos que dilaceram, fibras se rompem e no fundo da língua uma multiplicação de sabores, ainda mais plenos, agora um cego e ampliado deleite.



No escuro, sem outro estimulo para atrapalhar, também VEMOS, pois olhar olhando, não o fazemos, na cara, não damos conta; olhar nos olhos do outro enquanto falamos, no claro, ofusca, e optamos, portanto, pelo escuro; e assim enxergamos, pupilas dilatadas de coragem.



E no escuro, sem outro estímulo para atrapalhar, OUVIMOS, por também falarmos. Sem nada pra fazer, é o som estimulado pelas trevas que grita. Rompe-se o silêncio e vem a comunicação, a dois; três, quatro, cinco sensores convergidos pela ausência do branco. 
A Ficção do dia sem eletricidade, então, mostra que a REALidade sem iluminação pode ser ainda mais gratificante, aguçando sentidos e ajudando a melhorar relacionamentos

Entusiasmo

E você, consegue inventar entusiasmo?

A julgar pelo personagem de Machado de Assis, isso seria impossível, mas a observar alguns palestrantes motivacionais modernos, pode ser que sim; que alguns conseguem, de fato, simular entusiasmo, entusiasmando outros. De qualquer maneira, este ‘estado de espírito’ tende a ser autêntico, de difícil enganação, visto ser também uma forma de paixão; a demonstração de um grande interesse, um intenso prazer ou uma dedicação ardente, ato observável em Quintanilha, que não consegue fingir seus sentimentos junto a Camila, provável, talvez possível amor.

Nessa esfera, a do relacionamento romântico, o entusiasmo tem um papel importante, pois espontaneamente se declara e diz: ‘estou interessado(a)”. É no olhar que ele transparece, indo para além do artifício, não engana nem a si próprio, nem querendo assim fazê-lo, como um fogo que quisesse não queimar. Na esfera do trabalho, o entusiasmo adquire mais complexas formas, moldando-se ao ambiente e às necessidades (eba, dinheiro!!!), motivando-se a si próprio, fingindo-se espontâneo.

E aí reside o perigo, pois a motivação cessa, não se sustenta no auto-engano, engana-se ao crer que entusiasma. Só o dinheiro de propósito legítimo (Ikigai) vira entusiasmo de fato, observável e reconhecido. E a dedicação que se segue é então genuína, cativante e perene; ânima-fogo, olhar penetrante e uma prática que parece ser entusiasmo nativo.

A Ficção pode até enganar, mas é na Realidade das entrelinhas que surge o texto original, a víscera escondida que mostra o verdadeiro ser, brilhoso e contagiante.

Controle e Obediência

Pensar ou não pensar, eis a questão. 
Nesta belíssima e inquietante distopia de Ray Bradbury, as pessoas são praticamente proibidas de pensar, sob o custo de serem queimadas vivas; assim como os livros que por ventura ainda teimem em existir.


Ainda que escrito em 1981, a reflexão, hoje ainda permitida, mostra-se muito atual, visto a persistente tendência dos ‘formatos-padronizados-homogeneizantes’ que, via de regra, nos cegam, ensurdecem e paralizam.


O grifo escolhido refere-se a um cachorro mecânico, que teoricamente obedece somente ao que lhe é ‘ensinado’. Mas será que nós, humanos, não estamos entrando na mesma ‘onda’ do ‘sabujo’? A cada dia que passa, nos vemos inseridos num esquema de somente, e pronta-resposta; sem questionamentos, sem reflexões; só ação modulada e repetições de modelos testados.


Ler então, nem pensar! Questionar, jamais.

Obedecer, sim.

Essa é a regra do momento: agir de acordo com o esperado e, literalmente, sobreviver, pessoal, social ou profissionalmente. Desvie e será desligado, assim está escrito nas linhas veladas do manual do padrão do comportamento.
PERIGO. O que um dia foi distopia hoje é realidade e o futuro não é nada promissor; especialmente em sociedades onde o estudo foi castrado de valor e o que vale é o ‘esqueminha’ big brother perpetuado por imensas e desejáveis telas, circo constante ao alcance de todos, tristeza mascarada de alegria.


Que a Ficção aqui mostrada nos ilumine mais páginas, ainda a serem lidas. Que a tela brilhe menos e que o pensar prevaleça para uma nova REALidade.
Ainda dá tempo.

Imagem e Esteriótipos

Será que a imagem que temos de nós mesmos é a mesma que os outros tem de nós? 
Esse é somente um, dentre muitos outros ‘problemas que nosso querido Índio Spokane enfrenta quando decide ir estudar numa escola de ‘brancos’. Como era de se esperar, sua vida não é nada fácil, e a questão da IMAGEM é sempre presente.

Assim como no nosso dia a dia, no trabalho ou entre amigos, somos constantemente julgados, rotulados, esteriotipados; nos são atribuídos outros nomes, apelidos…


Neste livro ‘meio-que-autobiográfico’ DIÁRIO ABSOLUTAMENTE VERDADEIRO DE UM ÍNDIO DE MEIO EXPEDIENTE, Sherman Alexie joga essa problemática adolescente na nossa cara, e nos faz refletir sobre a ‘dureza do crescer’ e a força necessária para sobreviver.

E a Ficção neste caso, é a mais pura Realidade.

Deixar Fluir… Mãos e Criatividade

Este surpreendente e inusitado romance de Mathias Énard conta a estória de Michelangelo durante um período em que ele foi à Constantinopla, a pedido do Sultão de lá, o ‘grão-turco, para conceber e desenhar uma importante ‘ponte’ para a região; mais especificamente uma que transpusesse o ‘Corno de Ouro’, famoso canal do período bizantino.
E assim começa o processo criativo, que vai desde a observação da cidade, seus aromas e sons, até as pessoas, seu comportamento, suas essências, seus afetos. 
Assim aparece Manuel, um ‘assistente-amigo’, com quem o Maestro conversa com frequência, e a quem ensina alguns princípios bem básicos do ato de desenhar, ‘criar com as mãos’; e diz “HÁ DE TUDO NUMA MÃO.” Faz-se com uma Mão observando Outra. Nela estão todos os detalhes necessários para uma manifestação maior, mais poderosa. Mas tudo começa nela, no detalhe, na veia, no osso, na textura da pele que se dobra ao menor arrepio. É dali também que vem a essência do ato de criar: a observação delicada e meticulosa.
Não obstante, Michelangelo avança: “Confie no seu olho. Repita até aprender”, sugerindo que o importante é colocar a MÃO NA MASSA e deixar fluir. Fechar os olhos e enxergar, pois vêem no escuro. Sentem, e junto com as mãos, tocam. Faça isso uma vez, duas, dezenas de vezes… e depois repita de novo.
Está aí uma das receitas do processo artístico. Em “Falem de batalhas, de reis e de elefantes”, uma parte da história do gênio criativo do ‘Maestro’ é contada, e com habilidade, delicadeza, humor e um pouco de fantasia, que deixa a narrativa ainda mais interessante. Uma ode à arte e uma aula de história e criação, tanto pela audácia do autor, como pelas aventuras do personagem principal.

Liderança

Quem segue burro, burro é.
Não sei vocês, mas gosto é de seguir gente competente; gente honesta e inteligente; e não de Face, Insta ou twitter. Digo pessoas reais, presentes que, além de liderarem, fazem, põem a mão na massa e instigam o simpatizante; esses eu abraço, não de olhos fechados, mas de olhos que aprendem, arreganhados, brilhosos, mais que luz no fim do túnel um bom líder é a luz no início dele.
Aos burros, carga.
Ao comando quem instrui, enleva e guia.
Quem segue brutamontes, besta também é; não sabe, desconhece a virtude do seguir sabiamente; talento tem o fiel que sabe onde pisa, onde coloca as fichas; e aí cresce. Torna-se aquele que se espelha e aprende a ser.
A ironia é que jumento tem aí a dar com pau. Saem pelos ladrões e, nutrindo-se de gente precisada de guia, segue cega. E vai, obedece sem ver e sem pensar, conduzida por orelhudos que não ouvem, e caem num ciclo de inaptidão que tende a se eternizar: nem líder nem liderado estão aptos ao cargo; e que fazem? Estercar.
Mas não os magos, bruxos, sábios da ficção Rowlingiana.
Harry Potter e seus amigos não se deixam levar pelo engodo do falso profeta. Via estudo e reflexão, sabem onde ir, sabem o porque das coisas, e quais conselhos acatar. Escolhem, dádiva da vida, conscientemente. Fazem da Fantasia a melhor das Realidades e provam que até a Ficção de Bruxo, nada de Bruxaria tem. Ensina a pratica da optação serena e articulada. Às toupeiras, nada.

O Controle da Língua; questão de Sobrevivência

Voraz que a vida é, voraz com ela seremos. E com Katniss (a estonteante protagonista de JOGOS VORAZES, de Suzanne Collins) aprendemos que, para sê-lo, devemos moderar nossa abertura, limitar nossa exposição, suprimir a voz, perigosa que pode ser a nós mesmos. Ao nos fecharmos-em-partes, fraquesas não sangram abertas e mais fortes nos mostramos; ou menos frágeis, pois todos um pouco somos. Ainda assim, a cautela deve prevalecer, especialmente em ambientes competitivos, onde o ‘livro aberto que se é / o livro aberto que se mostra’ pode custar muito caro; preço muitas vezes impagável, a vida. Sendo assim temos que protegê-la, limitando acessos e dispondo somente miudezas, grão a grão, dedo por dedo, língua dentro da boca, fechada não entra mosquito, já dizia o velho, sábio ditado. Corta-se então a própria língua, põe uma máscara, engole o choro e vai à Guerra, Katniss. Pega o Arco e a Flecha e ganhe os Jogos, vorazes que para os fracos são. A ficção na Arena mostra que a Realidade é cruel, mas que quem sabe jogar o ‘jogo da camuflagem’ tem mais chances de vencer.

Levar a Vida a Sério

Ora, ora, ora, brincadeira tem hora.

Nem toda hora é hora de bagunça, trocadilhos e sacadas engraçadinhas. Sorriso no rosto é bom, todo mundo gosta, mas também tem hora; pois o momento é também do sério. Ele também tem o seu lugar. Tem seu direito, seu dever as vezes. Entre o funny e o sério, a balança é que sorri – as vezes um, as vezes outro. Alegria alegria nem o circo vive assim. Palhaços tem responsabilidade, entristecem, até choram. Ossos do ofício, o seu é fazer rir, os outros. Ele mesmo a si sorrir, nunca sabe. 
Assim também o homem sério, cara feia, lábios cerrados, cadê o dente, nunca mostra. Mas por dentro, quem sabe, sorridente. Ora ora ora, é bom saber a hora. Riso atoa engana; mais que a todos, auto engano: 
- Nossa ex-presidenta não sabe falar a própria língua: risos, ha ha ha.
- Malas são achadas com milhões de reais – nosso dinheiro: chacota.
- Assaltantes explodem caixas eletrônicos à luz do dia, ao lado da delegacia: risos, gargalhada.
- Vamos voltar a ditadura: funny, funny, very funny.
- Temos um jagunço no Supremo Tribunal que se acha acima da lei: que bacana, que legal, estou morrendo de rir. 
- Construíram uma dezena de estádios de futebol com o nosso dinheiro e agora está tudo apodrecendo, sucata de milhões sem uso: para para, me dói a barriga de tanto gargalhar…
Fala sério, brincalhões! Hellooo fanfarrões. 
A hora é de aprender com o ‘delegado infantil’ citado acima, e dar um presta atenção a nós mesmos pois, de fato, “há coisas sobre as quais não se pode fazer piada”; e nem se deve. Pois ao fazê-lo, atestamos o ridículo, endossamos o absurdo, e dizemos amém a palhaços que nos fazem de bocós, pior, bestas sorridentes hipnotizadas por um picadeiro disfarçado de circo, palco de ladrão. A REALidade aqui deve ser levada a sério; ainda que travestida em Ficção, nos ensina que, na vida, nem tudo é, ou deve ser hilário. Ha ha ha.

Os Peixes e a Gestão do Tempo

Não seriam então os Peixes o maior e melhor exemplo de uma boa Gestão do Tempo?

Eles nadam, flutuam, navegam submersos e respiram a seu tempo. Comem, vão adiante, ágeis. Desejam, procriam a seu tempo, sem perder. E quando a hora é grave, se escondem, ou se juntam, a seu tempo. Tudo no momento.
Com a corrente fluem, sem pressa deixam-se levar, poupam energia se precisam, sábios pra que luxo?
Mas quando é vida ou morte, ou a questão perpetuar, partem rio acima, sobem correntezas, enfrentam cachoeiras e pronto: cem novos peixinhos, já sábios mamãe nos ensinou a natureza é sábia, não adianta acelerar, no fundo já sabemos!
Tempo tende ir, tem que vir; parar ou navegar, emergir, respirar, bolhas temporais. Nós, no mundo dentro delas, ‘embolhados’, da bolha do tempo não ousamos escapar; bastaria um alfinete, de dentro para fora, estoura! Mas não, alfinetamos para dentro, sopro-de-seringa ampola-temporal, criação de tempo, mas tempo não se cria (!!!) seringa auto-engano.
A bolha é uma só, o peixe sabe disso, e fluxo; escorre pelas mãos, as nossas, pelas do anfíbio não, que sabe estar envolto pelo timing das marés e respeita o fluido. Nada com a água e nela nada. 
E assim é também na terra do Sudeste Asiático, Camboja (centro da narrativa de Miss Camboja, divertido conto de Geoff Dyer), onde o principal e mais tradicional meio de transporte de lá, o Cyclos, não necessariamente leva os turistas a algum lugar, mas definitivamente percorre… eflui no solo, como “os peixes em sua imperturbável falta de urgência”. Ou calma, como queiram; uma REALidade subaquática… silenciosa… que nos apresenta uma quase-Ficção mais morosa, suposta bem mais lenta, onde a pressa por decerto não existe.

Sobre a Imagem que se tem do Próprio Trabalho

E o seu trabalho? Te gratifica ou te fracassa?
E o sucesso, o que é? Vem do trabalho, mesmo que fracassado?
Vem da grana, do tesão recompensado, bolsos entupidos de papel remunerado?
Ou vem de algo além, indescritível gozo transcendente?
Quer sentir, vem comigo.

O Interprete de Males, conto de Jhumpa Lahiri nos apresenta um personagem sem igual, Sr. Kapasi, ‘interprete’. De que? De males. Entendeu? Uma função também sem igual, mas por ele até então desprezada, visto não ser ele o médico, Deus, para quem interpreta as dores dos pacientes atendidos. Não fosse o fato do doutor não falar a lingua deles (gujaráti), Sr. Kapasi não seria necessário; mas a realidade se mostra outra e então, não fosse ele a ‘traduzir’ as queixas dos enfermos, o desnecessário seria o doutor, este apto a compreender somente uma língua num lugar onde muitas se falam; Deus então é o Sr. Kapasi. Mas sem sabê-lo, sente-se um fracasso: Queria ser um verdadeiro tradutor, ‘interprete de diplomatas e dignitários, resolvendo conflitos entre povos e nações…’ Mas ao conhecer a Sra. Das, cuja família ele leva como guia turístico, trabalho extra, até o Templo do Sol, em Konarak, na Índia, tem sua visão alterada: ‘os pacientes dependem mais de você do que do médico’, diz ela; e ao enaltecê-lo, e seu trabalho, transforma-o. Passa ele a enxergar seu ofício como outro, o sucesso é o dele, não do outro. Nem sabia, ja o fazia bem, indiretamente já curava; e assim sarava do fracasso. A palavra interpretada era o símbolo da cura, sucesso da vida. É a forma do olhar que salva. O que se vê é o que cura; a Ficcão aqui abre os olhos, e a REALidade do fracasso é deixada no embaço ao toque de uma simples frase, ainda ainda que despretenciosa, esclarecedora.

Sobre o Deus Odin – Sabedoria e Prioridade

Sabedoria, uma questão de Necessidade ou Prioridade?
Aos olhos do Deus Nórdico Odin fundamentalmente uma questão sem discussão. Para obter a plena e total sabedoria, deve dispor de um olho, requisição feita pelo guardião do lago onde há a água da sabedoria – basta um gole e Odin terá toda a sapiência do universo. Ele nem pondera então, decide. Saca um facão, arranca o olho esquerdo e entrega-o em favor de gotas universalmente sábias. 
E você, trocaria seu olho em prol do mesmo? Um pé talvez, ou a mão esquerda? Um rim, o fígado? O que amputaria nessa excêntrica troca?
A lenda nos instiga, pois sugere o câmbio de uma parte física, corporal, por algo abstrato, um conceito. Porém ambos nos importam, na verdade são vitais, e é aí que o dilema reside: como abdicar de um em detrimento do outro? Bom mesmo seria ficarmos com os dois, não!? Mas a vida-como-ela-não-é, perfeita, não deixa, e diz: “a existência é feita de escolhas”, pura negociata. Para alguns, entre o ver e o saber, a questão é de prioridade. Para outros, nem como questão se apresenta; rezam que a sabedoria vem com o tempo, que a própria vida ensina, conhecimento se adquire. Mesmo assim, o mito nos contesta: “Odin passou a ver MAIS LONGE E COM MAIS CLAREZA”, ainda que SOMENTE COM UM OLHO, o que sugere uma louvável troca; afinal de contas, temos dois olhos… 
Não seria portanto óbvio esse escambo? 
A Ficção da Mitologia Nórdica não se mostra assim tão disfarçada; e provoca uma REAL reflexão sobre a forma como desejamos viver: enxergando pouco ou deveras, alternativas que requererão, assim como outrora, e hoje mais ainda, ponderações sensatas .
Boa sorte, escolha bem, e venha ler comigo.