Quando ganhou da moça com quem dormira dois dias antes do seu aniversário um presente no dia da festa, empolgou-se. Agora vai, pensou. E deixou-se levar pelo momento: o encontro, os amigos, as oportunidades. Parabéns para mim.
Parabéns de verdade, que a festa foi de acordo. Um monte de gente, sorrisos, música de banda e aquela bebedeira-corriqueira de todos os aniversários que minimamente se prezam. Uma, duas, três, quatro horas e uma realidade que foi aos poucos se distorcendo: as luzes inebriavam, as belezas ampliavam e a memória, como sempre, foi aos poucos se diluindo. Tanto foi que o presente que ganhou, o único a propósito, acabou ficando por lá: Madame Formiga estava escrito no embrulho, isso ele lembrava. Trufas, alguém dissera. Trufas especiais. Formiga gosta de doce, pensou enquanto acordava.
As imagens do sábado iam e vinham junto com o amanhecer. Ora a todo vapor, ora só fumaça, sempre nebulosas. No arregalo do olho tentava ver entre as sombras que ofuscavam sua lembrança: nada. Embaralhada procurando o embrulho que na sua cabeça já culpada: ‘esqueci o presente da moça lá no bar.’
Uma chibata o açoita. Culpado! é a sentença.
As trufas de chocolate, ‘irrompiam’ em rompantes desconexos. Atormentou-se.
Sempre com a certeza de um futuro acre, quiçá meio-amargo, deu início à narrativa: “como é que eu fui deixar lá?”. Deu-se início o sofrimento: “certeza que eu perdi“. Deu-se o drama: “nuca mais eu vou achar”. Fazia assim com tudo. Antecipava as dores. Conjecturava desastres: tornados, vulcões e tsunamis que o atingiam mesmo estando a milhares de quilômetros de onde quer fosse a sua localização imaginária.
Mais perto no entanto estava a casa de café onde encontraria a moça das trufas na tarde seguinte. O que ela diria? Como estaria? Quais eram as expectativas dela? E as suas? Supunha o infinito. E nesse quadro sem limite pintava um óleo que como tal nunca secava. Até o último segundo as conjecturas se sobrepunham, cegando-o; um pintor que jamais acabava um quadro, era assim que se sentia sempre que o futuro negava certezas.
O momento saiu da cama e o pensamento acompanhou o desjejum. Enquanto se preparava para o encontro, desenhou mentalmente todos os possíveis desenlaces: a partir das falas dela compunha as suas. Das perguntas, evocava possíveis respostas. E diversas, que o trabalho era árduo, inúmeras combinações. Dos movimentos viriam os seus, calculados de antemão; do sorriso, forjaria um espelho; do silêncio, sempre incômodo, ampliaria o som. E contaria histórias.
Tudo planejado, montou o fluxograma mental e desenhou o amanhã, negando sua incerteza: chegarei antes. Me levantarei para recebê-la e trocaremos protocolos. Sentados, eventualmente o papo vai chegar nas trufas (me lembro da exaltação mostrada na festa ao receber o presente), e ela me perguntará o que achei delas. Direi, como o melhor dos mentirosos, honestamente que adorei. Se ela perguntar de qual: todas. Se ela insistir: chute.
De qualquer maneira, faria de tudo para que ela jamais soubesse que as madames tinham sido deixadas para trás. Essa verdade não podia vazar. Ele não dava conta. Supunha que ela também não desse. Supunha o horror adiante; e até a morte da moça lhe passava pela cabeça: a dor insuportável seguida do curto circuito por ele infligido. Era excruciante lidar com a dor alheia antecipada. Mas a crença lá estava, inconscientemente nutrindo essa eterna culpa que pouco conseguia conter – ele também, sinceramente as vezes preferia morrer!
Por isso, seus planos mentais sempre flertavam com a mentira: um plano de contingência que via de regra se tornava principal. Por isso, ato corriqueiro, mentiu; pois ela, de fato, perguntou. “Estavam ótimas” ele disse, e com a maior cora de pau de quem sequer conseguiu beijar a moça na boca na hora do encontro. Foi um desvio de percurso, o desvio (do beijo/lábio). Totalmente impensado e que ele não conseguiu gerenciar com habilidade. Tanto que ela percebeu; e não gostou. Tampouco deixou transparecer. Ele também, bem que tentou, mas sem jeito pois virou uma pilha de nervos; primeiramente contidos, e depois distribuídos pelo corpo totalmente sem controle: pelo dedos, que não paravam de ir à boca, pelas pernas, que não paravam de dançar, cruzando-se alternadas, e pela testa, que insistia em brilhar apesar do ar que gelava até o café.
Papo vai, papo vem, arrastado.
O papo empaca e ele pensa entre silêncios. Queria preenche-los, conforme planejado, mas no afã da urgência, sucumbe à inação. E o tempo se demora. Vêem os cafés, uma água sem gelo e sem gás e o encontro vai se diluindo à medida em que os assuntos não prosperam: nem a festa que vingara enquanto evento, vinga enquanto prosa. Não está rolando, conclui; e na primeira oportunidade, foge. Mente mais uma vez sugerindo um compromisso e a conta é chamada. Despedem-se e ele parte sem maiores delongas: mais um beijo no rosto e dessa vez nem sequer abraços.
Ele interpreta o desfecho como um sucesso. Mas o inconsciente é soberano e impõe total revés. Sai de lá atormentado e se culpa, como sempre, nem mesmo sabendo o porquê. Ela considera o desfecho, final. Nem interpreta, pois os fatos falam claros, e meu tempo é precioso demais, conclui. E nem olha para trás.
Já ele, que vive olhando para lá, fica cego-a-frente, ou ao menos embaçado. Corre tateando. Tem que chegar ao bar o quanto antes. Já são cinco horas. Visualiza o pacote. Algo o chama. ‘O presente tem que estar lá.’ ‘Tem que estar inteiro.’ ‘Devem tê-lo guardado, ao menos.’ Tudo o que supõe passa em altíssima velocidade enquanto ele esquece do semáforo; esquece o endereço, não ouve o aplicativo. Chega no impulso ao destino onde espera encontrar algum alívio para suas questões recém criadas. Ele sabe que evitou o confronto, sabe que mentiu, sabe que não encarou. Sabe tudo, mas como saber não basta, evoca ainda mais alguns capítulos.
Se as trufas estiverem lá, beleza. SE, as trufas estiverem lá, repetia para si mesmo; aquele SE sugeria dúvida, algo o incomodava, seu eterno pessimismo. SE as trufas estiverem lá, suspeitando de antemão.
Está aberto? Está.
Avança. Corredor adentro. Uma luz no fim do túnel,
balcão.
Boa tarde. Boa tarde.
Ontem foi meu aniversário. Dei uma festa aqui.
Sim.
Esqueci meu presente. Uma caixa mais ou menos deste tamanho, amarela. Embrulhado numa fita vermelha. Vocês não acharam? Tava lá na frente do bar, em cima de uma mesa.
Um minuto.
O moço some. Vai aos fundos do bar. Vai ver-Volta.
Acharam?
Achamos sim, mas estava coberto de formigas. Muitas formigas.
Como assim?
Assim, moço. Tivemos que jogar no lixo.
Como?
Alguém trouxe a caixa aqui para dentro no final da sua festa e deixou embaixo deste balcão.
As formigas sentiram. As formigas acharam.
A caixa estava preta, você não ia nem acreditar! Tipo mudou até de cor.
Se verdade ou mentira, a história foi contada. A desconfiança se tornou perpétua e o bar nunca mais será visitado; fato é que as madames foram comidas: se pelos humanos ou pelas formigas, nunca se saberá. Uma suposição eterna que só um acaso fortuito por ventura consiga resolver.
Fato outro é que a resignação também dá asas à imaginação: ele decide que teria que comer algumas trufas; madames, e desta vez escolhidas a dedo. A compensação melhorada; uma gratificação recheada de culpa, é verdade, mas com açúcar suficiente para lubrificar o prazer e sugerir um sorriso. E corre de pronto para o paraíso das formigas.
Ele entra na doceria sustentando a graça, enquanto olha ao redor conectando-se ao ambiente. Algumas mesas, todas brancas assim como o piso, e o teto cor-de rosa. Pouco barulho, tampouco silêncio; quem estava ali era discreto, e lambia os beiços discretamente. Ele lambe os dele enquanto percorre a exclusiva variedade de trufas expostas pelo local.
O balcão por onde tem que passar em direção ao caixa é um palco de teatro onde os doces desfilam, ainda que imóveis. A luz os enaltece. O ambiente os empodera. As pessoas que contemplam aquele fashion week de insetos disfarçados de madames ficam hipnotizadas e não saem do transe enquanto não colocam a mão numa caixa.
Ele levanta os olhos para escapar, por hora, do encanto, quando congela. É ela! E vindo em sua direção; ele vira de costas, que vergonha. Tamanha que lhe pesa a cabeça, quer virar avestruz. As pernas tremem, também não consegue fugir. Quer desaparecer mas já é tarde. Se conforma em aparecer; e enquanto ergue lentamente a cabeça para encarar o tapa na cara, enxerga o fiasco da sua empreitada: o plano, o espelhamento, as perguntas pré supostas, as respostas, tudo cai por terra em meio a seus medos escondidos, sua insegurança, suas mentiras verdadeiras.
Tudo é de fato revelado quando os olhos se encaram, ela já desconfiava. Sabia e agora comprova: aqui está ele, adocicando a culpa pelos doces que largou na festa.
Sorri para ele, que contribui sem graça. Nada se falam, e o sorriso dele some. O dela não. E se move à frente já com duas caixas de trufas nas mãos: uma com a mesma combinação de sabores que tinha dado ao aniversariante, e outra para si, com sabores totalmente diferentes, que devoraria sozinha.
A primeira ela entrega para ele, que pega com uma das mãos, devolvendo a que tinha na outra. Nem se dá ao trabalho de olhar os sabores. Há um reconhecimento mútuo no brevíssimo olhar que se tentam. De ironia. De resignação. De verdade, que mesmo demorando para chegar, chega. Pois todas as Formigas tem Pernas Curtas.
Eurico_CP