O carioca queria me comer de qualquer jeito, então resolvi provocar o cara.
Depois de uma festinha na noite anterior e algumas mensagens na manhã seguinte, deixei-me seduzir para o providencial mirante, que eu ainda não conhecia, apesar das inúmeras vezes que eu já estivera naquela cidade. Era uma daquelas oportunidades, travestidas de acaso, que comumente não damos atenção mas que, neste dia, com aquele cara, com aquele sotaque, resolvi aproveitar.
Chegamos lá por volta das cinco e meia. O sol ainda estava alto e o vento começava a soprar mais forte.
O lugar não tinha muitos atrativos, mas um bastava. A vista de onde estávamos pouco valia; mas o isolamento que o mesmo lugar oferecia, muito convinha, eis o encanto. E ainda avistamos uma antena, dessas de rádio-aposentadas, bem comprida e alta, pontuda. Nem falo nada. Só olho pra cima e vislumbro um plano que brindava tanto minha queda por pequenas contravenções como também um desejo ainda camuflado mas que aos poucos se infiltrava em mim diante do cenário em formação. O malandro me olha, parece que me lê, e sugere que subamos.
Escaneio a estrutura. Há uma espécie de gaiola por dentro de toda a antena, e ao redor, algumas plataformas a cada quatro ou cinco metros onde se pode parar para um descanso, tirar fotos, apreciar a vista que, a cada degrau, sugere mais. O horizonte se alarga.
Nesse momento enquanto olhamos ao redor, reconheço o senhor com quem encontramos no caminho-na-subida e trocamos breves palavras. Ele também olhava o entorno; tranquilo, os longos cabelos bagunçados, um grisalho que se emoldurava pelo vermelho que nascia, um belo pano de fundo, contemplei. Também não tinha pressa, ou o celular à mão ansioso de fotos. As dele estavam soltas ao longo do corpo, ou apoiadas no parapeito, seguras. Assim como os olhos que também contemplavam; sem pretensão. Mas viram para um lado, viram para o outro, e cruzam e param nos meus, que sustentam a troca; e que dura um bom tempo. Tempo suficiente para que eu entenda os próximos passos; os meus e talvez os dele.
Assim, sem piscar ou sequer olhar para trás, começo a subir.
Também não percebo que o outro, certo das minhas primeiras, insuspeito das segundas – e talvez até terceiras – intenções, vinha ligeiro ao meu alcance, com um sorriso que eu não mais sustentava com tanto ardor. O plano havia mudado ligeiramente, e a rasa aventura começava a adquirir um outro fundo.
Botei fé no grisalho e esperei que ele também viesse atrás de mim. Mas o sotaque que grita o meu nome é jovem. É dele que vem a vontade de fazer história: antologia de esbórnia para colocar no caderninho.
Paro para pensar no meu diário e concluo que ainda tem alguns bons espaços em branco também; bons pra preencher. E eu tinha duas lapiseiras logo alí à minha mão.
Escrevo rápido. Sou rápida e subo adiante, minha saia atrás de mim.
Alcanço o patamar seguinte, minha saia dançando comigo.
Logo vem um; e o outro também vem. O espaço vai se apertando. O horizonte continua se abrindo.
Ninguém fala. São os ventos que especulam, silenciosos. Como se deles viesse um murmúrio inaudível, incompreensível, mas que aos poucos vai tomando forma.
E ouço, os decifro, e sem dizer palavra, subo que o movimento aquece.
Enquanto avanço dou uma olhada para baixo por cima dos ombros e vejo ambos, pares de olhos ambíguos, e minha saia que continua a voar, decidida e serelepe. Sorrio olhando para o céu. As nuvens correm.
A estrutura treme. São eles que vem, apressados, pois o horizonte, talvez já ao alcance das mãos, sugere urgência.
Já estamos próximos do último patamar e o vento agora começa a intimidar. Ele sacode partes da antena e sugere filmes de afrodíseo terror.
A perspectiva me excita. O inesperado me faz subir eufórica como se estivesse à procura de um porto seguro, às avessas. Cada degrau que subo me empodera e agarro as barras como se o pico fosse meu. E é. Por alguns segundos fecho os olhos e absorvo aquele ar que agora se movimenta em brisa, que o vendaval está em mim, e exala.
E como sempre acontece no reino-animal-que-somos, o macho sente a fragrância e vem aquecido. O outro vem logo atrás em chamas; e na confluência de tons e cheiros o improvável vai aos poucos se convertendo.
O céu já não é mais azul. O laranja o sobrepuja, mesclando-se. O sanguíneo virá em breve. Enquanto isso chego ao cume e aprecio a tela: um recorte natural do infinito modelado por nuances de magenta, pinceladas de rosa e uma exorbitância de laranja, que cenário!
O vento incensa minhas pernas e a minha saia dança. As cores se caldeiam ainda mais. Os que sobem veem a cena e logo imaginam um quadro; são pintores.
A lacuna do atrevido caderninho será preenchida: um dia eu já estive nas alturas e fui o modelo vivo de um deturpado quadro de Monet.
E_cp