Boa noite, colega

Se soubesse do perrengue de antemão, teria pago pelo quarto individual. Mas como a economia também fala alto – mais tarde descobriria que se ouve ainda mais -, optei pelo coletivo; contrariando, inclusive, o bom senso de evitar intimidades contraproducentes.

De qualquer maneira, lá fomos nós, desfrutar de um passeio cujo objetivo era essencialmente descansar. Passear e descansar; conviver com outros hóspedes e relaxar; e ao final do dia, dormir: merecido sono. O batimento cardíaco cai; cairia. O corpo repousa; repousaria. E eu acordaria remansado. Acordaria, pois a moça com quem eu compartilhara o quarto simplesmente não deixou.

Roncava absurdos. Do início ao fim da noite. Constante, ia e vinha. E um, e dois, e três; e um, e dois, e três, ininterrupta, infinitamente, profunda-e-não-mente, que o ronco é sincero. Não engana. Tem vida própria. Introjeta-se no hospedeiro e de lá comanda o inconsciente, perturbando o outro. Ou quem quer que esteja ao lado e por vezes em questão de segundos, quando nem ao olho alheio é dado o tempo de fechar. 

O turbilhonamento começava ainda com as luzes acesas, ainda com a televisão ligada, ainda com o banho sendo tomado; eu simplesmente não existia: era um vítima a bel-prazer da entidade poderosa: um ‘dementador’ de Hogwarts, sugador de energias; pois quem tenta co-habitar o mundo paralelo do roncador, se não vai à loucura, acaba esbugalhado. Desperta sem ter despertado pois nunca de fato dormira, com olhos seco-vermelhos, como se cheios de areia, e mal-sucedido até na tarefa de existir pela manhã; quando surgirá o abençoado café, mas parco, pois só ajuda até a noite por vir, quando tudo começará novamente.

Após a primeira noite, bem próximo ao desespero e a ponto de mandar as economias às favas, recorro à portaria, sonâmbulo, em preces de ajuda que surgem na forma de pequenas esponjas amarelas para ouvidos, bloqueadores de som. Agradeço a Deus. Passo a ter fé.

Até voltar ao abismo – ironicamente no terceiro andar.

Enfio as esponjas na mais profunda possibilidade do tímpano e tenho a sensação de um certo abafamento. Pseudo-silêncio. Torço. Fico na espreita aguardando por mais nada; uma longa angústia de perversos segundos. Mas meu cérebro meio que já esperava o próximo ruído, e já sabia dos tempos do espasmo; e eu pré-ouvia o que estava por vir. Percebia o que abafado penetrava. E é essa constante pré visão-do-som que desespera. A gente acha que o cérebro vai acostumar, mas não acostuma. A vontade é de morrer. E de matar ao mesmo tempo. Mas minhas mãos estão presas e não há o que fazer. A memória busca alternativas, mas só lembra de INSÔNIA, clássico com Al Pacino. Um horror a situação do personagem que nem de longe eu quero passar.

‘Comprei o coringa’, xingo em voz alta. E o grito morre no vazio. Dei azar. 

Mas sou criativo, ou desesperado, e alterno possibilidades. Na minha imaginação, ela já era, mas como nem durmo, ela está salva por enquanto, eu-consciente. Mudo o colchão de lugar e me deito no chão ao lado da porta de entrada para ficar um pouco mais distante do desafinado concerto. Há um armário que talvez rebata a insuportável frequência. Insuportável.

O esquema parcialmente resolve, e eu sobrevivo mais uma noite. Não me lembro se sonhei.

No dia seguinte já penso na próxima treva. Na portaria, já peço mais duas esponjas. Gostaria que fossem DIUs auditivos, infalíveis. Mas as esponjas são porosas, e mesmo que condensadas, mesmo que duas em cada ouvido – juro que tentei – vazam; deixam entrar o indesejável. Meio que dá certo novamente, e o artifício me permite acordar na manhã seguinte só como meio zumbi.

Na noite seguinte ganhei um remedinho, esperança-rivotril.
A criança relaxa. O adulto capota.

Espero, portanto, que o efeito me derrube-só-que-não. A frequência já está grudada em mim e eu a ouço mesmo que em absoluto silêncio: um relógio cujo tic-tac são trovões. 

A porrada vem amplificada, e eu a escuto como se fone de ouvidos.

Mais um rivotril, apelo.

Dá certo e eu durmo um pouco melhor; e meu café da manhã é de um, agora sim, pleno morto-vivo: acordado, mas total e não presente, condição que me acompanha durante todo o dia; em qualquer canto me encosto, fecho os olhos quando dá, e bocejo. E nesse momento chego à conclusão que, apesar desse estado meio sonâmbulo de existir, é a solução.

A noite chega. Esperança em cápsulas. Quiçá na veia. 

Mas como a predileção não está disponível, mando mais um comprimido para dentro, na crença do abate profundo. Prefiro perder dois dias dormindo do que um acordado, portanto-não-me-importo. E decidido, tomo mais duas doses de fé.

Não há arrependimentos.

O morto-vivo se adequa à própria condição e segue, meia fase, meio cheio, meio vazio e a meia certeza de que os sete próximos dias serão uma ode a Dante; e eu ainda estava só no terceiro círculo.

Os dias que se sucedem meio que fluem-na-ilusão, e eu acredito dormir. Acredito sonhar. E me burlo com a possibilidade do paraíso. Ainda estou no nevoeiro; quem sabe no purgatório e de lá não vou sair, tão cedo-tenho-certeza.

Estou intoxicado. Perambulo acordado, e durmo disfarçado de um sonâmbulo que se arrasta.

Meus olhos refletem meu desespero. Estão opacos.

O limite do penhasco me atrai para seu além.

Falta só metade da viagem. Eu aguento, tenho pensamentos de coach, ironicamente positivos.

E a psicodelia conjurada pela falta de um sono verdadeiro, misturada com excesso de tarjas pretas e um ronco perene me arrastam adiante, alucinado.

Saio do quarto em transe: cama, colchão, travesseiro, cobertas, lençóis e, para não ter dúvida, levo também as esponjas. As quatro. Três portas à esquerda, encontro um recuo que talvez acomode minha favelinha e me deito; e me cubro; e me vejo: um verdadeiro morador de rua que, espantado pelo frio, resolve se instalar no primeiro corredor de hotel que aparece pela frente. Sorrio maroto e finalmente hiberno.

É difícil me acordar.

Eles tentam. Me chacoalham. Fuçam no meu casaco que providencialmente pendia sobre uma das lâmpadas do corredor e descobrem um cartão; e um número.

É do mesmo hotel e do mesmo quarto onde, após abrirem a porta, encontram minha colega de quarto absolutamente imóvel e silenciosa, deitada de costas. Há um travesseiro sobre sua cabeça e ela está fria.

 

Eurico_cp

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