No momento em que o tema é dado, a caixa se rompe. O ditado vira realidade. Vão ter que ‘pensar por fora’. Assim como o conceito recém criado por ela, a professora que vivia por dentro do que não existia. E extraía-o-que-podia dos que se permitiam viajar com ela no curso de Arte & Conceitos Abstratos: uma conexão de instintos. Um absurdo, para alguns, mas era o que era, e a turma estava completa.
O tema é VAZIO, o que sugere o oposto, e logo a professora põe-se a conjecturar sobre o que a surpresa causará aos pupilos. Sim, assim eram aos olhos dela. O que aquele desafio despertará? Como lidarão com esta urgência e a insubstancialidade.
Eram tantas as acepções.
E tão pouco tempo. Uma hora, ela dá.
E eles, no instante apavorados, logo embarcaram no juízo-ao-desatino, no vácuo das idéias, no buraco negro das palavras. Na tinta preta que da cor aos pensamentos. Teriam que pensar & rápido, para ontem, pois a pressão do vão automaticamente reduz o tempo daqueles que devem ocupá-lo.
Clara sente falta de ar. Busca de boca aberta, de boca fechada, nariz a puros pulmões, levanta-se, abre os braços. Nada acontece até fechar os olhos. Como se eles fossem não a porta da alma, mas uma janela para o céu azul, repleto de balões, bexigas, milhares delas-e-coloridas, recheadas de idéias e pairando sobre sua cabeça.
Era o oxigênio que ela precisava, transformado em hélio-inspirado, e põe-se a matutar.
Irritada com a proposta, Bárbara cruza os braços. Empina o nariz, balança negativamente a cabeça e abre a boca num longo suspiro. “Lá vem eles a preencher vazios”, pensa. “Não há nada melhor a fazer?” Era do tipo que ocupava o tempo de outra forma; as lacunas com prosas, as entrelinhas com palavras. O vazio não existia, pois no instante em que surgia, ela o obliterava. Falava, andava, corria, trabalhava o tempo todo; autora, palestrante, apresentadora. Manda tudo às favas, ressignifica a opinião e põe-se em movimento.
Amanda, que tinha vivido fora do país, lembra da cidade onde morou; agora fantasma. O que ficara, há quanto tempo? nem lembrava, mas a sugestão da professora a remete diretamente para lá. Foi onde vivera por anos e de onde trouxera inúmeras lembranças, hoje fragmentadas. “Consigo consertar o vaso?” especula enquanto rabisca no papel os tema-pedaços sobre os quais podia escrever; grandes cacos, lisos, ásperos, minúsculos, pesados, de cerâmica, de vidro… Reescritas porcelanas costuradas na pena.
O sistemático Cícero endireita-se na cadeira, arruma suas coisas na mesa, coloca as mãos, os dedos alinhados à folha que ele já destacara do caderno e aperta os lábios, uma prática sua, olhos fixos à frente. O desafio é fácil, e de pronto começa a ordenar acepções: branco, buraco, fantasma, vazio era só uma questão de conexão e o exercício estaria pronto. Engenharia, sua formação. Mas e a narrativa? As mãos espalmadas começam a imprimir digitais, e seu olhar, sempre atento e determinado, por enquanto oscila.
Matuta e plena, Clara flutua balões à fora, e vai.
Bárbara escreve; mãos à obra. A folha em branco só existe para ser enchida, e ela entulha.
Amanda chora; borra-maquiagem.
Cícero continua vacilando. Os dedos vão à boca. Os dentes os mordiscam.
A folha da Bárbara-rasga. A ponta do lápis quebra. Ela esmurra a mesa.
A professora, que até esse instante mantivera-se calada, mantém-se. Se faz parte do exercício, talvez e ninguém sabe. O curso tinha também esse tom; e falava de instinto: o contrário do preparo. E por isso Deus ria dos que insistiam no Plano; talvez naquele instante risse de Cícero.
Só falta o maluco surtar, pensa Bárbara enquanto o observa duro. Ele realmente congelara, mas paradoxalmente tremia; e suava. O vazio o abandona no escuro. No fundo do poço onde a luz, ainda que paire sobre sua cabeça, é um minúsculo pingente a quilômetros de distância. Sua lógica não alcança. Ao suposto contrário de Amanda, cuja lógica da saudade resulta em lágrimas; o passado continua em cacos que ela tem que consertar. Pingam gotas na folha. Ela não esmurra a mesa, mas tem vontade. Olha para cima, como Clara olhara, mas só vê o teto. Clara via muito mais, ela supõe, por isso continua olhando para ver se enxerga. Insiste, insiste, insiste.
Não vê nada, mas Clara fica lá. Quando finalmente finalmente baixa os olhos.
Vai começar a escrever, imagina a professora; mas ao invés disso ela escaneia o ambiente-lentamente; olha para os lados, não troca olhares. Somente observa o entorno como que para captar sensações. E dessa vez quem sorri é a professora, como se a conhecesse desde sempre, e a cada um deles.
Do poço sopra um vento; e um movimento. Descongelamento. O plano é posto em prática e ninguém vai rir de mim, pensa Cícero enquanto imagina cordas, e madeira, uma escada e começa a subir. O pingente está longe, mas o suficiente para dar luz ao início do seu texto.
Outra folha se vai, mas não rasgada. É Bárbara atolada. É o Trabalho de Síssifo, a Agulha sem fundo, a Teia de Penélope. A fraude, ela especula; a aparência, a falsidade, as palavras açucaradas, o canto da sereia. Tudo e insuficiente: o limite, as máscaras; a miséria das máscaras. E ela escreve como se não houvesse amanhã, literalmente; e nada. E novas reflexões, pois o mundo nunca acaba, ela conclui-por-enquanto.
E por ora o choro-cessa. A pia esvaziou. A saudade escorreu toda e só sobraram gotas; pequenos fragmentos de um tempo que passara. Que Amanda reforça: ‘já passou, larga mão, deixa disso, enterra!’, e ela põe no papel o tempo que ficara por lá. Uma porcão de cheios e vazios, intensidade moça, novas cores, cheiros e sabores, os sentidos todos aflorados ao som do menor toque.
Paradoxo do gelo, Cícero derrete, e poeticamente, pois flui. Suas mãos acostumadas à lógica, saem da régua. Os círculos saem das mãos e não mais do compasso, que é aniquilado; até a linha é sinuosa, e ele coloca uma cobra na história. A troca da Pele. A morte e o renascimento.
Antologica-mente, Clara já devaneou por quarenta e três minutos. “Deixara sua mente esvaziar? ou já a completara com o que acabara de colher?” supõe a professora quando coincidentemente ela começa a escrever. Letra atrás de letra, palavras vão se formando, determinadas como se elas próprias se pusessem a escrever. Clara é só passagem, ou um fio condutor por onde carrega o que foi determinado; um corpo preenchido por um destino que vem de fora; ela redige em alta velocidade e de olhos fechados.
O tempo passa, como se esvaziando, uma ampulheta.
O vazio de Bárbara são quatro folhas amassadas.
No vazio de Amanda, três molhadas. Uma não. (dar uma mão ao leitor)
O vazio de Cícero são três em construção, como tijolos; suas mãos a argamassa e um telhado porvir.
No vazio de clara, uma explosão de balões. Azul, Vermelho, Verde, Rosa, eram todos que ela vira; e de cada um deles pinga uma infinidade de acepções que no caminho foram transmutadas para o cinza; variações do preto e branco que ela captara, na forma de letras e palavras, e que instintivamente preenchera conectando as percepções de cada um.
O tempo acaba. Toca o sinal.
Eles levantam a cabeça procurando a professora.
Ela não está.