Invasão de Domicílio

Eu o via de longe, aos poucos ofuscando a nossa claridade; obstruindo a nossa única janela. Nossa única porta, nossa entrada. E vinha sem hesitar.

Sem um respiro, imediatamente começávamos a recuar. Íamos até onde podíamos; até nos espremermos em medo. Até onde não dava mais, e até onde literalmente grudávamos na parede. Até quando um colega era arrancado para fora, meleca que somos.

Grudamos em nós, mas grudamos nele também.

Quando ele chega, portanto, leva um monte. Vem grandão, e sem pedir licença-sempre-entra. Adere a nós como cola e é melhor aceitar que dói menos. Lá fora ainda seremos observados com uma estranha curiosidade, como se para a checagem do nosso tamanho, nossa textura, as vezes realmente grudamos demais.  Fora isso, seremos sempre lançadas depois, como bolinhas perfeitas entre dedos (quase sempre viramos bolinhas), ou eternizadas (bolinhas amassadas) embaixo de uma mesa qualquer; qualquer cantinho de parede.

Eu por enquanto vivo, e felizmente sem forma, que nunca a tivemos definida.

E como já tinha uma certa experiência e uma tendência a analisar os fatos, aguçado olhar, conhecia a grosso modo os horários do sufoco, e me escondia lá no fundo. Bem ao fundo, aliás, nas profundezas da cavidade nasal, onde nem a menor sombra de luz é capaz de alcançar.

Meu visitante não é, digamos, constante; tampouco pede licença. As vezes fica semanas sem incomodar e isso ajuda. Fazemos a maior festa durante esse período, sujamos todo o salão; e como multiplicamos vorazmente, está sempre sujo. É só quando ele se limpa que, digamos, a alma é lavada. 

A dele, pois que a nossa é levada. Assim como alguns corpos que vão no fluxo, na maioria adoecidos, embora pia abaixo, verde grudento-aquarelados. O rastro que fica é uma espécie de alento. Um lamento que se esvai conforme nós, sobreviventes, acabamos por respirar melhor. Mas também inspiramos assustados à medida em que nossos colegas são esfregados ralo adentro pelo que hoje chamamos de  cerimônia da água quente, que demora a chegar, mas que transforma o evento num enterro-cremação que finalmente elimina os últimos vestígios de uma linhagem que certamente deixará saudades.

Esta espécie de catarse assusta ainda mais quando ele encasqueta que ainda há alguma coisa fora do lugar, uma casca antiga, perseverantemente seca e dura; ele tem que futucar. Esquece que o universo pode estar assistindo e engaja na dissonância da estética. Ofende a beleza ao colocar o graúdo no nanico; um horror. Uma distorção de proporções inaceitáveis que insulta até a perspectiva.

E quem o faz certamente não se olha no espelho. Se olhasse, veria não só a feiura como também a impossibilidade; que só acontece, a propósito, quando o ser-se-acha invisível. Não consegue enxergar o próprio reflexo distorcido, violentado; um grotesco personagem de filmes de terror.

A cena avança. O vício vence. O limite da elasticidade é colocado à prova. E o do tempo também. Ele vai além, além do minuto e fica lá; gira para um lado, gira para o outro, uma broca helicoidal; força aqui, força ali, e só para quando encontra o que supõe suficiente. 

Mas o que jorra é sangue, e o que volta é a pequena falange de cabeça vermelha até embaixo das unhas. Uma afronta à natureza que ele ainda tem a pachorra de contemplar: parece o membro o machucado, e ele se volta ao espelho para ver uma outra distorção, esta bem real: um pequeno buraco de um lado, do outro uma cratera – suas bordas inchadas e pulsantes. Ele revisita a garra, como que checando as proporções: incrédulo. Mas insistente, e talvez inflamado pela cor em evidência, enterra o indicador novamente cova adentro para arrancar aquele maldito naco que insistia em incomodar; futuca um pouco mais e só quando começam a descer lágrimas dos olhos, se rende; finalmente.

Uma ode à persistência, reconhecemos, pois que nós também o somos. Mais ainda, tenazes, visguentas, e um tanto teimosas.

E gostamos de aprender.
A propósito, o corpo gosta. E isso também aprendemos durante uma série de TV que ele gostava de assistir; e com quem compartilhávamos o prazer, ainda que deitados na borda do perigo: documentários médicos.

Neste dia, o programa era exatamente sobre a gente – sessenta minutos sobre o muco nasal: nós em essência.

Segundo a ciência, uma espécie de secreção transparente (ainda que nós nos vejamos verdes) que é produzida na mucosa, a parede do nosso algar, e que serve, e muito, para o bem estar do humano que nos alberga: mantém os tecidos hidratados, e impede que algumas porcarias como bactérias, vírus e fungos acabem nos seus pulmões.

A natureza é sábia. 

Mas ele a confronta. Traz toda a imundice no mundo para dentro. 

No fundo, ele sabe.

E agora nós sabemos; também que somos essenciais. 

A gente protege; ajuda a respirar.

Ele precisa de nós, e não somente o contrário. 

Mas ele não respeita essa co-dependência e desvirtua a lógica das decisões. Ou algo que além dele decide, pois basta um ócio, uma espera, uma ansiedade e lá vem ele, como que com vida própria, a preencher buracos vazios. Sentimos a dilatação e nossa casa cresce de tamanho por alguns segundos.

Sofremos com esse vai e vem. O corpo produz exatamente o necessário de nós, mas quando o tamanho da casa aumenta, ele supõe que somos mansão, e nos lota. Por isso decidimos que alguma coisa tem que ser ser feita. Nos reunimos na última assembléia e decidimos que vamos ser resistência. “Ninguém larga a mão de ninguém”, um colega disse, e acho que vamos seguir essa linha. O decreto então foi para que, a partir daquela data, todos fossemos ainda mais agarrados. Não bastava mais o visco natural, mas tínhamos que mudar o nosso comportamento para que ele mudasse o dele: amálgama.

Por isso entrelaçamos; e o resultado foi aos poucos aparecendo.

À medida em que aumentávamos a dificuldade, mais determinado ele ficava: incursões de até cinco minutos! E variadas: Polegar, indicador e até mindinho. Quase desistimos.

Mas depois de uma frustrada e dolorida tentativa com dois dedos que o fez chorar sangue, sentimos que o jogo podia mudar. Ouvimo-lo dizer: “Nunca mais”, um desfigurado olhar no espelho.

E como o doce que se come, a erva que se fuma, o gole que se dá, a mão obstina. Volta a obsessão, deturpada: chupam-se os dedos, roem-se as unhas. O couro cabeludo é coçado a ponto de dos cabelos caírem. Os dedos apertam os olhos. 

Quando a dor rompe em desesperado choro, uma gota que para – esperando acumular-se, – na porta de casa nos sensibiliza. E enquanto a assistíamos magicamente engrandecer, por uma fração de segundo soltamos as mãos. 

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