Sinuca de Bico

Dizem que a vida-casada pode ser por vezes monótona; ou até sempre, pregam aqueles que perduraram pouco no rolê. A relação vira uma amizade, dizem outros; parceria de vida, os que perduram a eternidade. Para esses a água morna é benta; o marasmo, benção: uma calmaria validada pelo tempo sem mudança: vinte, trinta, quarenta anos de repetição ensimesmada e rugas que se entrelaçam por dedos idosos de bisas felizes.

Para Branca não, anti-linhas de expressão.

Casada há poucos anos, pronome poucos dela, não se via na rotina dos antigos, e muito menos na sua que se moldava; um círculo vicioso que a propósito repelia: casa, trabalho, casa, banho e cama. Não era isso o que esperava. O vislumbre do futuro cedera espaço ao tic tac do presente, e o acaso, o risco e o imprevisto, o tripé da sua extensão, simplesmente arrefecia.

No esvaziar do tempo então, resolveu preencher os dias: encontrou nas imediações do parentesco um tic tac de outra cor: Bola oito, seu concunhado tinha horas, minutos e segundos de sobra que usava, a propósito, jogando bilhar.

Um belo e hábil praticante, verdade seja dita, parecer compartilhado pela própria cunhada, que não media palavras para exaltar sua sorte no jogo. O homem encaçapava, e com proficiência, sem jamais ter rasgado o feltro.

Mas como o jogo tende a vício, e Branca é tentação, as bolas se multiplicaram sobre a mesa; tornaram-se átomos chocando-se contra as bordas: partículas se acelerando enlouquecidas. E o feltro, que sempre fora verde, foi aos poucos se avermelhando.

As partidas eram jogadas como disputas por troféu, e a entrega sempre mútua. Ora na casa de um, ora na casa de outro, ora onde quer que houvesse uma bancada, punham seus times em campo: tacos e bolas e via de regra uma melhor de seis caçapas. E como norma dava empate, sem cessar marcavam para depois uma revanche. 

Revanche vai, revanche vem, e a melhor de seis virou seis meses de tacadas soberanas; encaçapadas precisas, movimentos ousados: diretos, com efeito, com puxada, com muita puxada, até que o feltro se rasgou.  

E ela engravidou.
Bola oito agora cresce dentro dela, inesperado legado.

Inesperado movimento que ela paralisa, não consegue agir. Não sabe o que fazer, e no silêncio que se segue ao susto, pensa; pensa, pensa. Cala. Não diz nada a ninguém e só pede a seu mancebo que suspenda temporariamente as partidas: mas que guarde as bolas, o taco e a mesa pois nunca se sabe o dia da próxima peleja.

Usando a metáfora do jogo então, aventa possibilidades. Enxerga o bilhar com todas as esferas presas no triângulo e ‘estoura’: a angústia se dilui em pensamentos objetivos e a solução se apresenta logo à frente dela; com se a partir de colisões atômicas um feixe de luz iluminasse seu futuro. Ela enxerga outras bolas, e todas do mesmo tom do seu corrente desespero: uma amiga de infância, o marido dela e a descendência que nunca existira seriam a solução. Eles não podiam ter filhos, mas agora, contundente acaso, poderiam: bastaria um simples acordo e Branca seria a barriga de aluguel de uma nova geração de bolas oito. O sonho de uma se concretizando no imprevisto de outra. Uma história cujo roteiro se perfazia na base da fé, enquanto os atores eram convencidos a seguir o script.  O bebê nasceria de acordo com a exatidão da genética e a mesa do cunhado poderia ser usada novamente; uma novela em preto e branco que agora só dependia da boa vontade dos atores.

“Mas amiga, isso não vai dar certo. Seu marido não vai topar.”
“Do meu marido cuido eu. Veja com o seu negão o que ele acha.

Alguns dias depois, do lado pardo da empreitada, vem o aceite. Do outro, um bigato duvidoso. “Jamais”, o marido de Branca dizia. Achava um absurdo a mulher carregar o filho de uma outra, ainda mais de outra cor. Uma insanidade, um despropósito, “um vitupério”, dizia ele a palavra que aprendera com a avó. Mas como o tempo no caso era vital, ela perdurou no convencimento. Jamais era a sua palavra, não a dele. Uma vez que acertara com a comadre a empreitada, jamais que voltaria atrás. Jamais desistiria. A solução era perfeita; a idéia, brilhante; a aprovação do marido, um mero detalhe, um pequeno percalço que se tratado com atenção logo sumiria.

“Amor, vem para a cama vem” foi só o começo. Logo depois vieram os banhos regados de apetite, seguidos dos cafés da manhã com ovos quebrados pelo chão. Os suspiros ao pé do ouvido dele também geraram frisson e as poucos ele foi amolecendo, uma carne mal passada. O passo seguinte foi o discurso da bondade: como assim negar a vinda de um filho ao mundo? “Eu só serei a cápsula”, ela dizia. “Deus quer que ela tenha um filho. É nosso dever ajudar”, e assim, pelo apelo à culpa cristã e luxúria do inferno, ele sucumbiu.

Como não entendia nada de medicina, muito menos dos procedimentos necessários de preparação do corpo para receber um embrião alheio, bastou uma ida manipulada ao hospital e logo ela pode aparecer barriguda diante do marido; e do amante, que a propósito nem deu bola. Como um homem de categoria, o ventre pouco importou. Continuou prestando seu papel sempre que a moça vinha, agora e ainda mais com a garantia de que o fruto das suas lascivas incursões não lhe trariam problemas: fosse de quem fosse o filho, o problema não seria seu.

Os meses passam, passam.

O tempo voa, que a ansiedade dos que operam na surdina sempre acelera as horas. Os detalhes adquirem uma nova relevância. Outros detalhes aparecem, e idéias brotam para contornar hipotéticos e futuros imprevistos: o RG.

Resolvem, portanto, forjar uma identidade com a foto de uma na carteira da outra; a comadre teria o rosto da amiga, e o bebê uma mãe legítima. As bolas brilhavam enceradas.

As semanas encurtam.

Os dias encolhem.

A hora chega.

O bebê nasce: branco.

Vem um choro de bigato e ela assusta. Pega o bicho no colo e checa para ver a verdade. Duvida dos olhos e enxerga de novo: branco, branquíssimo, uma branca de Neve deitada no açúcar comendo algodão doce sabor nuvem. Indiscutivelmente branca. Inapelavelmente branco; seu filho.

Ela refuta: “não pode ser!” chora aos médicos. Mas é. 

O silêncio que se segue é uma série de especulações mudas de indignação e inconformismo. Ela volta ao passado e checa as possibilidades, as probabilidades, um termo mais exato: um por cento, dez no máximo e fica fula. Foi num dia de rotina, ela se lembra até da-data. Uma despretensiosa de ladinho, rapidinha execução protocolar. 

Bastou. E ela chorou lágrimas maquiadas.

A comadre entra na justiça por que queria o filho do acordo, fio de bigode, e o processo corre lá. Também dá com a língua que cresceu nos dentes, e a amiga perde também o marido; assim como a traída, que ao ficar sabendo da história, larga o amante da concunhada que, por sua vez escancarado no rolo, se volta para a sua amante que a essa altura não tinha mais nada a perder.

E segue o jogo.

 

Eurico_CP

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