Meia Salsicha

Dentro do universo fálico, as possibilidades são infinitas. Basta o olhar querer, que enxerga. O cérebro logo acolhe as chances e o mundo fica mais comprido. 

Im e d  i  a   t   a   m    e    n    t     e.

E alto, pois dentre suas infinitas manifestações, o poder logo vem à tona. Ao alto, pois que a gloria via de regra abre os braços para aqueles que quererem subir – e somente a eles, cujo local de ofício, também via de regra é lá em cima. 

As demonstrações estéticas dessa constatação estão por toda a parte, a saber, de um primeiro segmento, os prédios; os edifícios, os espelhados que resplandecem nas alturas. Cada vez mais alto. Flertam além do céu, penetrando nuvens. Emanando poder.

Muitos horizontes são moldados pela sua presença e há sempre um que chega para atualizar a panorâmica. Os picos vão surgindo e subindo à medida em que o tempo vai passando; doce paradoxo entre a idade da gente e a idade do concreto; sua duração. O aço.

A natureza. Os outros picos: aqueles com neve: brancas avalanches que escorrem face abaixo. Engolem pessoas inteiras.

Há os vulcões, que também escorrem. Aquecem até a morte pessoas inteiras.

Talvez sejam menos poéticos se comparados ao frio. Porém muito mais orgásticos. Se derretem em chamas, vertendo o sangue da terra depois do gozo primordial.

Há os picos nos quais se sobe(m), picos de onde se pula, picos que chamam para a aventura: uma flecha humana na forma de pássaro. O desafio de quase morte. A subida que antecede a queda, quase que literalmente, le pettit mort, o gozo dos franceses.

O gozo do fogo. Da vela, eterno. Do isqueiro, controlado. Do palito de fósforo uma rapidinha, que logo vem outra, e outra, e mais uma que na cama cabem muitos; de cabeça vermelha e sempre prontos para mais um brasa, que é deles que o cigarro depende: um fálico acendendo outro que inspira, e aspira hipnotizado de prazer

Sobre o charuto então, prazer à flor da pele que o trago não é bem vindo. Bastam as papilas gustativas e um tamanho generoso. O cumprimento simboliza a bitola do poder e se inspirado nas alturas, inspira ainda mais. Clubes de simpatizantes que vão galgando o acesso via baforadas excludentes; o círculo da fumaça do Olímpo é obviamente para poucos. E nisso o falo também é bom: exclusividade. 

Difícil é saber onde ele não é bom, pois em tudo praticamente encaixa. Basta olhar ao redor. Garrafas, garrafas de todos os dias; vinhos, espumantes que explodem. Jorram. Eufóricos sorrisos borbulham. O vinho que é aberto; o ritual, a rolha sacada. É tinto. Escorre na taça: algumas lágrimas são mais espessas que outras, tudo sugere.

O batom, que também marca presença na borda do copo, está na bolsa. Um objeto que nas mãos de quem flerta com o espelho cresce; embeleza. Basta um movimento circular na base daquele delicado cilindro e lá está o bastão colorido para os sedentos lábios, ainda opacos, secos. O movimento da pintura é sexy; húmido. Tem seu tempo. A tampa fecha o cilindro e o batom volta à bolsa, saciado.

A caneta é pega no bolso da camisa: uma Montblanc. Deve ser de um poderoso, que trabalha num edifício muito alto e que provavelmente fuma um cumprido charuto. Ele escreve um bilhete e entrega nas mãos da moça que está ao seu lado. Ela o devolve com os números do seu quarto.

Que os homens de gravata também deixam seu rastro; está justamente no adereço mencionado: o tecido, a largura, o tamanho, a cor, tudo compõe a imagem de um desejo disfarçado. Mas que o inconsciente enxerga plenamente e age como que no controle de uma marionete que jura ter o livre arbítrio nas mãos. A cabeça não pensa. A outra age, e por vontade própria.

Falo independente. Falo que se alastra como que pulverizando a adoração; e as exibições da sua deidade estão por todas as áreas – alimentos, produtos de higiene pessoal, objetos de decoração, armas, meios de transporte, ferramentas, entre outros, moldando inclusive as relações humanas mais inocentes, como comer um cachorro quente.

Uma salsicha envolta por camadas de sabor; hoje tantos que transmutam a inocência da fome na bocada da volúpia; quanto maior, melhor e escorre pelos cantos da boca enquanto dedos melados de purê e catchup são chupados um a um.

É saboroso, é suculento. A Murta geme e o gemido é bom; interno, ninguém precisa ouvir, que o prazer é individual – uma salsicha inteira. Há quem prefira duas, que o fetiche também é exclusivo; é gula. O legado da experiência fica na memória de cada um e no guardanapo que vai ao lixo carregando as lembranças coloridas de uma orgia capital, como uma camisinha usada.

Por isso, quando ela cortou as salsichas ao meio para colocar no molho de tomate, ele pirou: “Não é para cortar as salsichas!”, disse sobressaltado. Foi como se lhe tivessem cortado ao meio; ou ainda pior, que lhe tivessem amputado o vigor.

Problema é que ela não sabia. Amputado o vigor! lhe disse o narrador. 

Como é que saberia? Então quer dizer que salsicha não é só uma salsicha? Há algo mais? Há algo por trás? 

Claro, lentamente concluiu após um constrangido e importante silêncio que se seguiu ao arroubo; e que também serviu para amenizar o clima; acabou por apiedar-se do marido.

Mas incontida, revelou-se pelo riso e gargalhadas que se seguiram. Ele não entendeu nada e ficou mais inquieto ainda. Gritou como um filho mimado que, mesmo sem saber o motivo, atua sempre na defensiva – ‘isso deve ser comigo’; e neste caso, ironicamente era, pois o mito da salsicha inteira estava dentro da cabeça dele, para não dizer das calças, que foi exatamente para onde ela direcionou o olhar enquanto ele esbravejava sem parar. Ela sequer ouvia, mas viajava profundamente no simbolismo daquele momento único; épico, que se explorado com cuidado e atenção, poderia mudar o rumo da história que a tendência natural das coisas desejava perfazer.

Por isso saca um vinho e distrai o foco. Se aproxima dele com as duas taças e dá um beijo. Ele corresponde ao sabor da uva sem doçura. Gosta dos paladares mais salgados e ácidos.

Ela estica o braço e mete a mão dentro da panela com o molho que esquentava e pega uma das salsichas ensopadas, pingando, e leva à sua boca que imediatamente abre. Pega mais duas e põe na própria boca. Eles mastigam se olhando nos olhos, escumando. Se mastigam, por fim, e trocam pedaços de luxuria sem nenhum pudor. O desejo escorre pelo canto da boca enquanto eles se beijam desesperados; como se uma obra de Jackson Pollock estivesse sendo pintada alí na hora, monocromática mas com infinitas nuances de vermelho. Tão intensas que eles resolvem literalmente se incorporar ao quadro que se perfazia no chão, e que a essa altura já esquentara até o azulejo e que aos poucos vai virando uma tela viva, cálida, escorregadia e sonora. Viram artistas do modernismo e pintam no piso um novo renascimento a óleo. A segunda demão é ainda mais unguinosa e demorada, pois a panela que lá em cima fervia, ebule e jorra abaixo gotas ainda mais gordas e deleitosas, intensificando ainda mais os sabores que apuravam.

Bacon e Azeitona.
Salsinha e Cebolinha.
Tomate
Pelado e Pimenta.
Sal.

“Está pronto”, disse ela logo após a obra finda. “Sim está”, ele replicou sorrindo e, pegando uma meia salsicha que rolava por alí, assinou o nome dele no azulejo branco. Ela sorriu de volta, pegou a mesma salsicha e fez igual. Em seguida engoliu o pincel.

Tipo masoquistas top-chef então, se abraçaram de pé e contemplaram o trabalho por alguns longos segundos, quando a panela deu um estalo. O molho havia secado. Os embutidos jaziam lá, satisfeitos como pequenos falos individuais em repouso; foi o que viram quando voltaram os olhos para a panela que não surpreendentemente tinha também virado uma obra de arte. Infinitos tons de queimado e vermelho pintavam seu fundo como um óleo recém concebido; simulando um instantâneo que complementava e emoldurava uma produção inesquecível: o dia em que uma provável discórdia fora contida por toda a amplitude do ecossistema do falo. O desejo, o impulso, a raiva, o descontrole, a pulsão, o flerte, a conquista, o poder. 

Nesse dia, os dois subiram ao trono.

E_cp

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