Exageros de Pandora

Gostosos como são todos os exageros, exagerei. Mas não no começo, quando ia tudo muito bem.

Ou quase tudo, pois logo ao chegar à casa do meu melhor amigo, o melhor amigo de todos os homens, Wiskie, o cão, desconsiderou a máxima e lascou-me uma respeitável mordida de boas vindas na mão esquerda, a sangrar-me os dedos e fazer pingar. Tudo bem, que na casa do Shaolin, sempre preparado, curativos e cervejas à disposição, anestesia para qualquer ocasião. São servidos-petiscos, cervejas, destilados.

Lá pelas onze da noite, resolvo partir, mas não sem antes recusar alguns convites para ficar: ‘dorme aí, amanhã cedo você vai’. Mas como são os exageros, exagerei também na independência: “Não, obrigado. Amanhã tenho que acordar cedo”, típica resposta de quem, não estando bem, logo se prontifica, pelas palavras, a estar.

Quase convencido então, internalizando crenças, abraços de despedida e promessas de ‘volte-sempre’, “claro-voltarei” embarco no carro e parto na escura pista: primeira a esquerda, duzentos metros à direita, siga em frente por um quilômetro até a rotatória. Siga em frente por quatorze minutos… waze e eu seguimos como bons companheiros, eu mais atento que ele, quando ouço um barulho no pneu traseiro esquerdo. Ele obviamente não deu bola, mas eu, convencido pelo credo já instalado, acreditei que era somente uma pedrinha, daquelas que entram no sulco do pneu e insistem naquele barulho que alguns talvez conheçam: tec    tec  tec tec tectectec cada vez mais rápido assim como a minha velocidade; quanto mais rápido, acreditava, a pedrinha iria embora. Não foi! E a estrada, pixe-ao-luar, me impedia de ver o que deveria ter ouvido: o pneu estava obviamente furado. Mas quando a fé entranha, gruda nos ossos e assume o controle da teimosia, especialmente aquela dirigida a quem insiste em negá-la. 

Negando ainda mais então, persisto, pois assim é também a insistência, naturalmente exagerada; e o tec tec continua, agora também na cabeça. Estou lúcido, suponho, mas o pneu não; e ele não supõe nada. Em sua integridade de borracha então, começa a manifestar seu desconforto em outros tons: ao tec se assoma uma tendência de puxar o carro para a esquerda, e aquela mão recentemente seca do sangue coagulado, volta a escorrer; olho para ela, para a breu a minha frente, ouço o pneu chiar um outro som e finalmente me dou conta – mais ou menos – de que pode haver algum problema.

Mas os dissipo imediatamente.

Ao ver a luz da grande estrada lá à frente, cego de esperança e paro, ato contínuo, de pensar bobagens. O carro ainda anda apesar das reclamações do pneu, e o Waze, minha pandora da hora, me conforta dizendo que após trezentos metros, é só pegar à direita e seguir por vinte e três quilômetros até meu esperançoso destino.

Quisera, pois percorridos quiçá três, já não consigo mais controlar o carro, e com o volante tremendo e melado de sangue, passo também a suar, vendo pelo retrovisor não a estrada que deixava, mas a frustração de um passeio cujos imprevistos começam a distorcer o futuro.

Me rendo, e no escuro, encosto.
O Tec Tec finalmente vira pisca pisca e eu, sem piscar, tento entrar em modo solução: foco. Ao meu lado há uma densa mata; a lua está escondida. Medo. Do outro, pista e vento; arrepio. Mas sem opção me mobilizo para a delirante tarefa de trocar pneu. São onze e meia da noite, estou sozinho, cansado e por fim ciente das saideiras, que sempre dissimuladas, continuavam a dizer que eu deveria ter ficado. Mas como não ficara, encaro o escuro cenário de um filme que aparentemente me tornava protagonista.

Imediatamente me lembro do amigo que havia deixado para trás; dos tempos em que o zombávamos pela sua exacerbada precaução: sempre com uma gigantesca sacola no porta-malas com tudo o que se pode imaginar: cordas, fios, alicates, parafusos, cortador de cinto de segurança, latas com diferentes fluidos, luvas, lanternas… e suas benditas pilhas.

Achávamos aquilo tudo um absurdo. Especialmente quando íamos viajar e, carentes de espaço para acomodar nossos pertences-e-cervejas, maldizíamos aquele ‘pessimista’ que por nada cedia o espaço que era sacramente reservado para suas precauções. “Pode acontecer”, ele dizia. 

Agora, quando aconteceu, o otimista aqui sofre, não só de angústia, mas também de inveja por jamais entender aquele maldito MacGyver de outrora, versátil cientista, que agora mais que nunca, tinha razão.

Já eu, sem luz, lanterna, ou pilhas, penava. Mas lembrando da modernidade-celular, e orgulhoso da altivez inesperada, sorrio iluminado; mas só por instantes, pois à medida em que tento usar o aparelho, percebo sua inutilidade-celular. Só clareia o céu, ou o chão. Ou terei que fazer malabarismos.

O som dos caminhões que passam, em contraste com o silêncio de deixam, apavoram; é a morte que fica. O agressivo vento-que-vem no vácuo das carretas, também; sombrio. E a luz, que poderia servir como um alento ao terror, de pouco adianta; passa rápido demais e deixa um longo, longo, longo rastro de consternação.

‘Sem pesar, por favor’, digo para mim, e foco no porta malas. Pego os equipamentos, e sem demora começo a labuta do desparafusamento às cegas. Ora em cima da chave de roda dando pulos, ora agachado ou de joelhos no chão, e deus nas alturas, giro como posso, e na medida em que enxergo os cinco, infinitos e embaçados parafusos. Um após o outro vai caindo e somente pelo tato consigo colocá-los no bolso, à luz de mil malabares. 

O macaco levanta o carro. Eu levanto as mãos ao céu. No chão jaz um pneu estraçalhado.

Pego o outro seu irmão, um Continental 205P Contact 2 e sinto que estou no caminho. Agora é só coloca-lo de volta, baixar o carro, apertar os parafusos e pronto; mas a luz no fim do túnel é difícil de enxergar. (no fim do túnel não há luz.)

Como encaixar o pneu de volta? Com fazer aqueles cinco minúsculos furos encaixarem na estrutura do eixo? Como levantar aquele pesadíssimo pneu no escuro e fazer o encaixe? Como fazer tudo isso  sozinho, ainda levemente embriagado e não obstante, cansado? Por que não liguei para o amigo? Ou a seguradora? E a concessionária?

Sento arrependido, penso.

Acesso a luz da idéia, a única disponível na ocasião e estico as pernas para baixo do carro colocando o pneu no meu colo. Ótimo! Ao sentar-me, meus olhos ficam na altura do eixo do carro, melhorando minha noção de altura. Com o pneu no colo também não precisei fazer muita força para levantá-lo e colocá-lo no lugar. Deu certo. Pandora, estamos juntos.

Sobre o risco de ter as pernas esmagadas, não me importei. Tinha plena consciência do que fazia, e também outra certeza, daquelas absoluts, que o macaco aguentaria.

Pneu posto no lugar, agora é apertar os parafusos, baixar o carro, guardar o pneu estragado no porta-malas e ir embora; tudo como manda o otimista figurino: um final feliz e a cabeça no travesseiro, dormindo pesado o sono dos justos.

Mas como que despertado de um pesadelo, justo ou não, assusto com um novo trepidar. Uma enorme carreta passa a centímetros de mim e ofusca momentaneamente a realidade da situação: não baixei o carro, não apertei o parafuso, e nem fui pra casa. O único sonho que sonhei foi o delírio da dor que me apagara. 

Ao finalizar o encaixe do pneu, e antes que pudesse trazer as pernas de volta, ao menos uma delas, eis que o aliado macaco cede, sem as costumeiras graças da espécie. A dor é dilacerante, mas não a ponto de me fazer apagar de novo. Assim sofro-bem-sóbrio. Respiro fundo, a meditação fala alto. Mas a dor é insuportável. Aperto a mandíbula, ranjo os dentes; e lembro da professora de yoga que sempre pregava o contrário.

Pouco adianta; ofegante tento achar o celular.

Está lá, logo ali, iluminando o céu; e ironicamente. Pois era de lá mesmo que eu precisava de uma ajuda; uma luz no sentido contrário talvez, pois as de baixo, rodando na horizontal, só cegavam; E a eles também, motoristas, que por algum motivo tampouco me viam.

O medo real de ter a cabeça esmagada dissipa momentaneamente a dor, e passo a sentir, a cada passagem de veículo, o cheiro da sua borracha queimada e o trepidar do mundo que incontrolavelmente assomava ao meu pulsar. Eu estava todo esticado e minha cabeça exatamente em cima da faixa que separa o acostamento da pista!

Mas como temer sobre o que nada se pode fazer a respeito é perda de tempo, foco naquela luz que clamava pelos deuses e alcanço o celular. Travado-celular. Quebrado pela chave de roda que caíra em cima. Imprestável para qualquer contato. Exagerado-celular que insistia em iluminar o céu. Meu santo graal dilacerado.

‘Alguém há de me achar aqui’, penso. Mas vi também, ou desconfiei de uma poça que se formava embaixo de mim. Em outras circunstâncias talvez achasse que era somente o óleo pingando do motor, aquela mancha escura no chão. Mas não dessa vez. Alguma parte do carro deve ter baixado bem em cima da minha coxa. Estendo o braço e sinto um corte-curto, mas profundo. Sei disso pois, não sentindo o toque, e na ansia de acessar minha escancarada condição, levei a mão ao machucado até onde se podia, e lá se foram quatro dedos. 

E desmaio novamente.

Não se sabe ao certo o tempo do sonho, mas o da dor pode ser infinito. 

O novo despertar vem junto com uma outra agonia, talvez até pior que a primeira, pois pareço sentir meus ossos. Olho com aqueles olhos de quem não quer ver e, além do sangue, reconheço a cor do marfim que aos poucos perde o brilho… e começo a ver elefantes. Sinto que estou caindo no abismo do colapso novamente, mas dessa vez não deixo. Das lágrimas que me embaçam os olhos e agora me escorrem queixo abaixo, faço colírio. 

Já sei que meu estado é grave. Já sei que vou perder a perna e que não há nada a fazer.

Relaxo e fecho os olhos, agora de propósito e jamais resignados. Só queria descansar um pouco, jamais dormir, que naquela situação qualquer piscada pode ser fatal; mas os inimigos de Pandora usam de artifícios infernais e põem também minha perna para apagar. Assim relaxo ainda mais e sucumbo à natureza da fadiga.

Um toque no meu ombro quer me trazer à realidade, mas continuo nas trevas. Era difícil acreditar que não estivesse mais sonhando, ou indo e voltando. Queria simplesmente o fim.

Era Pandora, sempre exagerada. Que por linhas invisíveis abre meus olhos de cílio-em-cílio e me faz despertar. Ouço barulhos que não o dos caminhões, dos tremores ou do silêncio, mas vozes. 

Acompanhadas de um luz vermelha que gira, e gira, e gira. Exageradamente.

 

Eurico_cp

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