Chapéu

Quando a moça do caixa falou o preço do chapéu, ele até deu risada. Não pelo preço que normalmente nos faz rir, mas pelo que faz a gente desconfiar.

Cinquenta reais. Absolutamente, barato, mas para ele, que há anos procurava o tal, este se apresenta de valor inestimável. Nem de Caipira, nem de Boiadeiro, Cartola ou Coquinho; Fedora, disseram, marca famosa. Também não era cumprido nem achatado, ou largo ou estreito, mas sim perfeito. Na cabeça o espelho confirma, e ele sorri modificado, colorido: ele preto e branco, o chapéu tipo-junino; o tecido, agradável que bastava, e padrões que ele gostou.

Faz caras e caretas no espelho do provador. Muda o chapéu de posição, checa o ajuste na cabeça, a resistência, se combinava, e aprova: “somos nós.” 

A vendedora que o acompanhava no provador e o via pelo espelho, não entende direito a fala, mas sorri: “Foi feito para você”.

“Sim, e hoje é o nosso dia”, ele completa se dirigindo ao caixa, e logo já está do lado de fora da loja, e já são sete horas, quando ele ouve seus pensamentos: “eu estou aqui para me divertir, eu estou aqui para me divertir”, que ele logo acata e transforma em mantra: “eu estou aqui para me divertir.”

Repete e repete enquanto caminha-repete e a verdade vai se formando na cabeça. Amplia: nós estamos aqui para nos divertir.

E foram. E lá estavam agora no meio de uma balada, ele com um wiskie na mão; o chapéu na cabeça em movimento. Ambos dançavam.

Ele olha para um lado, olha para o outro. O contexto vai se formando. Os olhos se ajustam ao ambiente. As luzes deixam de irritar, você se deixa levar. Fica mais leve. Talvez a mera idéia de um chapéu traga leveza.

Ele flui. Mais um drink, outro flui.

Ambos fluem.

As luzes passam a ser essenciais. Os momentos sem ela também: a adulteração; aquele minuto em que ninguém vê ninguém. Ou quase ninguém. E todo mundo vê todo mundo. E quase o mundo todo.

Quando nesse mar de quase e tudo, ele vê um garoto se aproximar. “Olá”, diz muito educado. E o diálogo segue num ritmo bem peculiar, alumiado pelo mesmo pisca-distorção: “Olá”, vem de cá a resposta um tanto indiferente. “Gostei do seu chapéu”. Um elogio sempre cai bem; abre portas. “Obrigado”. “É o seguinte:”, diz o jovem de peito estufado e confiança estampada, “Quero comprar o seu chapéu!”. “Como”? “Isso mesmo, quero comprar o seu chapéu.”

Chapéu e cabeça aturdem: Como assim, nos comprar? “Não está a venda”.

O garoto é sorridente e persiste. Já deve ter passado por outras rejeições; gato escaldado. “Cara, eu gostei muito do seu chapéu. E deixa eu te explicar melhor. Eu pago duzentos reais por ele.

A música é alta. O valor é difícil de entender. Mais ainda de acreditar; quando o jovem saca a carteira e coloca as notas para fora. A luz que vem e vai mostra a verdade. Enquanto cintila, as onças, ferozes notas de cinquenta aparecem quatro vezes. O dinheiro está na mão; sendo oferecido basta pegar.

O chapéu teme. É quatro vezes o valor pago. Estou perdido, pensa.

Mas a coalisão que se formara no espelho lá atrás não cede, e ambos, na voz de um, resolvem explicar os motivos: “veja bem, amigo. Esse chapéu me encontrou hoje; e eu o encontrei também. Somos dois, eu e ele: ou nós, se você preferir. 

O garoto está pasmo: “como?”

“Além disso, tem toda a questão do personagem, sabe? Eu, o chapéu, minha roupa, a dele. Combinamos para o dia de hoje. E estamos aqui para nos divertir.”

“E eu também”, sorri novamente o garoto, “Por isso preciso do chapéu. Te dou quatrocentos reais então.”

O chapéu dessa vez treme, só esperando ser tirado da cabeça. Se isso acontecer, pensa, já era. E enquanto uma boca abre de espanto, fazendo contas, uma outra abre sorridente e confiante, tirando da carteira mais quatro perversas onças determinadas a dissuadir decisões. São oito vezes o valor do chapéu, que a essa altura está apavorado. 

Um breve silêncio se instala em meio ao som que ensurdece. A balada para para os três, como que congelados. Como que em câmara lenta em meio à euforia. A expectativa permeia suas emoções ao mesmo tempo em que sinapses são trocadas entre o personagem e o chapéu. A decisão está tomada, pois o espetáculo que ali se apresenta não carece de dinheiro. O valor é a diversão.

“A resposta é não. E não há transação.”

A resposta surpreende o garoto, e de uma forma curiosa, enquanto a balada volta a girar, sonora: “Taí, gostei de você”, ele diz mediante a rejeição. E “Vem comigo” sugerindo a direção com tamanha decisão que não houve outra opção senão seguí-lo, as cegas, talvez com uma certa curiosidade, mas certamente com mesmo mantra na cabeça. A idéia do divertimento podia estar sendo posta em prática, sem que nem se dessem conta.

No cantinho do lugar, um lugar especial. Uma porta para entrar; um segurança-pulseirinha, inferno particular.

E eu estou aqui para me divertir, ele repetia insistentemente para não cair no conto dos medos e das desculpas frente ao imprevisto.
Lá dentro, ainda conduzido pelo garoto, é apresentado aos amigos, as amigas, e a uma garota especial; ela sorria largamente para o cara com o chapéu. Ambos retribuem. Um outro tipo de silêncio se instala, quando o garoto o rompe dizendo: “Eu não consegui o chapéu para você, babe, então trouxe o dono junto.”

Mal sabia ele o infeliz negócio que fizera.

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