Ouço meus passos. Cada um deles, um pé depois do outro; outro dia até de meias. No assoalho, de noite, escorregando em silêncio pelo corredor, lá estava ele, o som.
No banheiro, o som das águas. No chuveiro-cachoeira.
Na volta para a cama, o lençol. O que sinto na pele agora me toca os ouvidos.
Viro para um lado, viro para o outro, ouço meu marido.
Ele também se mexe. Respira, ronca. Roncava, pois o que eu escutava até então, até me acostumar, era canção de ninar; agora, de matar: o urro de um urso, talvez; mas que com a costumeira legenda do dia a dia, sempre soa baixo demais.
Ensurdeço. E o sono me derruba na marra.
O liquidificador me desperta. À trinta metros de distância, na casa vizinha, qualquer coisa e muito gelo me tiram da cama. Um minuto, dois, três, cinco, dez minutos que me piram, piram.
E finalmente a paz. Como se depois de um show de Rock.
Caminho até a cozinha enquanto tento incorporar o novo som do meu andar.
Interessante adaptar.
Meu café começa tranquilo até que uso uma colher; na xícara, diluindo o açúcar. Escuto o tilintar nas bordas. O ruído do fundo sendo raspado. Giro várias vezes. Fecho o olho, ouço mais.
O gole tem som, e eu quero beber um milhão de litros.
Bebo água da garrafa de plástico amassada. A amasso e desamasso várias, várias vezes. Para ouvir o cré-cré.
Cré Cré, a propósito, é um apelido pelo qual meu filho de vez enquanto me chama. Eu adoro mas ele não sabe. Ele só fala assim quando está de bom humor. Quero ouví-lo me chamar de Cré Cré novamente.
Sua voz que será-que-mudou?
Pois a minha sim. Nem mais a ouvia, por falar nisso. Esquecera dela, acho que da mesma forma como a gente esquece dos membros, quando sem dor; mais ainda dos elementos internos, esôfago, medula, traquéia. Quem é que vai se lembrar da traquéia? Quem sabe sequer o que a traquéia faz? De qualquer maneira, só a dor & o desconforto é que nos vão trazer, à consciência, a existência. E desconforto não havia; nunca houve. Nunca reclamei do que ouvia.
A não ser o desconforto dos confrontos com meu filho que insistia no meu declínio.
“Aceitação da decadência”, é essa a questão. Ao aceitar o que me propunha-um-aparelho, aceitaria o fim da página, poucas linhas adiante. Por isso, emudecia, não respondia a seus apelos. Seguia como um time em que não se mexe. Se estava perdendo, teria que ser convencida disso.
Assim, eu só ouvia o que eu queria, e tudo bem-pra-mim. Na verdade, ainda melhor. Praticava o contrário do que uns ditos experts pregam: escuta ativa. A minha estava ‘seletiva’. Sem eu saber, escolhia a dedo. Um privilégio de exclusividade as avessas, eu descobriria em breve: flertava com a demência, me enclausurando na bolha sonora dos hábitos cristalizados.
Mas como tudo que é de vidro um dia quebra, sucumbi às vozes do amor; do afinco, da chatice; da insistência daquele para com quem um dia eu fui exatamente a mesma, só que no sentido contrário: eu-a-chata, ele-o-teimosão.
Então demos as mãos de certa forma; nos unimos numa empreitada que, pelas contas dele, durou dez anos. Mentira! Nisso, me recuso a acreditar. Quiçá uns cinco! Esse é o tamanho da minha teima. Ele falava, eu rebatia: não preciso. Precisa, ele dizia. Estou ótima. E ele quase desistiu.
Mas não, persistiu; talvez como eu também persisti, persistia, persisto, persistirei com ele.
Pois quem ama-cuida; e meu filho se preocupou comigo.
Com são interessantes as expressões do amor; que agora, a propósito, ouço. Pois quem ama-ouve também, e eu quero ouvir meu filho,
me chamar pelo apelido.
Enquanto isso, absorvo meu arredor. Consciente e inconscientemente, e levo sustos, pois as vezes vem um som de um lugar que eu não esperava. O ronco do motor do carro, por exemplo. Assim que saí do prédio, ainda assustada pelo elevador e pelo opressivo eco da garagem, vem esse ronco que não estava no roteiro da minha nova rotina. A cada mudança de marcha um desconfortável ‘crescendo’. Baixando os vidros, um tsunami de orquestras em total de-sinfonia.
Deixo-os fechados. Aguento mais um ronco. A noite eu lido com o urso.
Por enquanto, lido com gente. A cada encontro-uma-surpresa. Eu distribuía sorrisos pelas vozes que escutava. Parecia uma criança. Era como se estivesse conhecendo novas pessoas; ou as mesmas-modificadas. Temperadas pelas vozes. Jamais imaginei a Irene tão alta; o Ricardo largo, o Moisés quase careca. A Maria bonita, o Lucas tão forte, a Verônica que deixara saudades. Eu conseguia ouvir até quem eu não via mais.
De volta no carro, entro e fecho a porta. Fico lá por alguns instantes em silêncio. Acomodando novos sensores. Assimilando esse meu novo super-poder.
Viro a cabeça para ver se faz diferença. Direita e esquerda tem o mesmo som.
Sigo em frente, sempre um bom destino. Penso na música e resolvo ligar o som do carro, baixinho; e no diminutivo mesmo, pois é no crescendo que eu me acostumo com o grande. E qualquer barulho, agora ampliado, pode espantar.
O calor me faz abrir as janelas, também aos poucos, e encaro o ‘mundo-ouvido-de-dentro’: outros carros, caminhões, ônibus, motos, muitas motos: pequenas, grandes, enormes, cada uma no seu tom, todas fora do meu, suas buzinas me tiram do prumo. Movimento. O movimento também parece que tem som; a calçada vive, as pessoas dão passos; a vitrine grita com o som das suas cores. Os alto-falantes simplesmente irritam demais.
Fecho a janela. Ligo o ar. Pasmo: o ar tem som!
Ademais, frescor. E logo escutarei também o frio.
As Quatro Estações de Vivaldi, me lembro. Escutarei as estações. Os violinos, o contrabaixo, o piano, as violas, os clarinetes; as folhas caindo, o sol brilhando, as flores brotando.
As abelhas. Será que escutarei as abelhas? A polinização? Pois sinto como se meus ouvidos tivessem sido polinizados. Neles entraram a vida e eu agora, semente, posso dar frutos: retornos adequados a pedidos de compreensão.
‘I see you’, dizem os avatares. “Eu te enxergo”, e completamente, que o ser biônico vai além das aparências. Os sentidos são cinco, e eu era somente quatro; mas neste instante amplificada, absorvo a terra em sua plenitude. Tudo que me chega-fica. E até minha memória se esmerou. A lembrança adquiriu um outro alcance: meu filho vai chegar.
“Bom dia, Cré-cré”, ele diz assim que abre a porta.
Me viro assustada; mas é ele mesmo, e está de bom humor.
EuricoCP