A arte de pedir e aceitar favores deveria realmente ser tratada como arte, pois tanto quem pede como quem aceita acaba por confeccionar uma obra, seja ela a composição de uma música, a pintura de uma tela, a redação de um conto, quiçá até o conjurar de uma escultura.
Esta arte se perfaz no exato momento em que se pensa sobre ela, e de imediato ambas as partes logo se põe a produzir. Especulam mentalmente, imaginam um possível resultado, avançam o sinal: pedem. Usam expressões idiomáticas, cara de pau. Do outro lado a resistência mental. A dúvida angustiante. O sim, o não. O ressentimento que antecipa a negação do pedido. Aí vem o ato de acolher o chamado; a boa alma projetada que se concretiza no aceite.
Sim.
Tínhamos parado o caro num ateliê em Embu da artes, São Paulo, para comprar um lembrança para a irmã da minha mulher, rio-pretense, também artista, antes de seguirmos viagem. E lá conhecemos o escultor em questão: oriundo da Holanda, especialista em cavalos, herança da família que tinha um haras por lá. E que trouxe para cá na forma de arte, desenhando e modelando equinos de todas as formas e tamanhos.
Até aí, tudo bem, quase até um encanto, pois nossa região-destino privilegia também as empreitadas rurais, e junto a elas os rodeios, os cavalos, a nobreza deles, os haras de cá, inclusive. Por isso, demos corda, a prosa fluiu, e o senhor da crina, como era conhecido em Embu, foi ficando, a cada minuto, mais a vontade.
Papo vai, papo vem, veio o pedido, direto e reto: vocês podem trazer o Sultão de volta para mim?
Sim, eu já disse, mas Carla não.
“Sultão!!! Quem é Sultão? O que é Sultão?” ela vira os olhos e me lança um olhar que eu decifro palavra por palavra: “Como assim você aceita um favor sem nem saber do que se trata?” Mas eu já sabia. Só podia ser um cavalo. Sultão, naquelas circunstâncias! É nome de cavalo.
O artista confirma. Nem vê os olhos virados da minha mulher – ou finge que não – e explica que fora sua primeira grande obra, o mais importante pedaço da sua infância que ele trouxera em idéia para cá, materializou, e que deixara em São José do Rio Preto, primeira cidade brasileira por onde passou.
“Eu morava um sítio por lá. Vocês podem falar com a Sônia, a atual moradora. Ela pode recebê-los e ajudar com o carregamento.”
Carla não se aguenta: “Carregamento, meu senhor”, diz mantendo a classe. “Mas qual é o tamanho desse…” pondera, “cavalo?”
“Tamanho natural.”, ele responde e já emenda: ‘cabe perfeitamente nessa sua caminhonete.” Esse é o seu carro, não?”
Cara de pau é pouco, deve ter pensado Carla. E puta da vida, completa “você é uma besta. O Holandês é um folgado, e você um idiota”.
Besta, idiota, tanto faz como tanto fez, pois eu já estava excitado. Carla já sabia: quando eu me empolgo nada me segura. E uma longa viagem, ainda que parcialmente adulterada, mas salpicada de arte e equinos pela frente, me anima ainda mais.
Eu só teria que conviver com uma esposa de mal humor por algumas horas. Assim, prometi a mim mesmo serenidade. E cumpri o acordo com mérito; e demos sequência na empreitada que, a essa altura já inflava minha imaginação que voava livre à medida que o carro avançava.
O tom da viagem neste ponto era uma nuance entre a forma como Carla reagia a determinadas situações, e a minha forma de reagir às mesmas. Eu sorria por dentro diante do cenário em que nos metemos, e ela virava a cara para o vidro, como se quisesse atravessar a janela do carro. Ou como se sussurrasse seus demônios, embaçando o clima.
Eclipsando o som. Pois ao longo percurso de três horas, só-ouve-silêncio. Carla já me conhecia, mas nem por isso deixou de reforçar aquele incômodo de discórdia velada pelo meu pronto e animado aceite em trazer o potro de volta. “O que que custa?”, eu dizia, mas as palavras empacavam. “É só um favor, e nós temos a caçamba; e tempo. De repente você pode até gostar do Sultão!”
A mudez persistia. Era assim que ela interagia com o desgosto; e quanto mais eu suplicava pela troca, o branco se adensava ainda mais, sem quilômetros que a fizessem murmurar; até que as caixas de som começaram a tocar-um-galopar. A música era The Four Horseman, do Metallica, e ela não só-se-mexeu, como também sorriu-ironias: Os Quarto Cavaleiros do Apocalipse! era o tema da canção.
Rimos, e deu-se fim ao silêncio; e ao final do som do metal nos pusemos a cavalgar pela nossa infância na fazenda da vó-dela, avivada pelo destino a nossa frente, que passou a correr suave. Quanto mais próximos da cidade, mais perto do passado, e as lembranças que evocamos foram suficientes para que a viagem se tornasse também breve, como a distância mínima entre o artista e a sua arte quando posta em execução. Tudo flui.
Fluímos.
E logo estávamos na porta do sítio onde onde fomos cordialmente recebidos pela moradora, que prontamente nos apontou o caminho.
Paramos no alto de uma colina e escaneamos o horizonte lentamente; cento e oitenta graus Carla, cento e oitenta eu e bingo lá em baixo. Avistamos um brilho, só podia ser o imperador.
À medida que descíamos o barranco de mãos dadas, aumentava também nossa expectativa, não mais somente a minha, pois a essa altura Carla também se deixara comover. E imaginava Sultão em seu mais belo esplendor: um alazão de dois metros e meio de cumprimento por um e meio de altura, bem estruturado em aço corten, placas de alumínio para revestimento, e metais precisos nas ferraduras.
Mas não. Nunca a relação expectativa-realidade foi mais frustrante.
A Sultão em questão fora moldado nas coxas holandesas. Feito essencialmente de vergalhões e coberto de chumbo e metais vagabundos, elo estava jogado no chão; escondido por baixo do mato, enferrujando. Triste-cena.
Não podia ser o nosso Sultão! Não aquele que nos fora prometido. Não aquele pela qual viajamos até o nosso limiar, para além do mundo físico: uma obra ostentosa, bonita de rabo a crina, bem esculpida, brilhante, linda e sedutora.
Muito pelo contrário, nem o nome lhe cabia. Zezé, talvez; um Zezé decrépito no máximo, e que nem com muito esforço viera da memória da Holanda. “Ah, aquele Holandês me paga”, suspirou Carla; enquanto eu, pasmo , contemplava a decepção. Grande decepção, pois o artista, no quesito tamanho fora bem honesto.
O equino era graúdo; e também muito nutrido; e muito bem dotado a propósito, que o fanfarrão de Embu também fizera questão de incorporar no bicho aquele outro vergalhão: ora pequeno ora grande, mas ali uma constante, e com o qual teríamos que lidar.
“Taí a sua aventura, gostou?” gracejou Carla já se afastando. “Agora é só preparar o material. o barco, Odisseu. Partiremos ao raiar do dia.”
Resignado e bem antes disso, antes até do canto galináceo, eu e Sandra já estávamos a postos para embarcar a égua na caminhonete que eu tinha encostado num barranco. Com dificuldade, subimos primeiro o rabo e as nádegas, depois as pernas traseiras. E então o incômodo vergalhão que, obviamente rijo, conseguiu nos constranger enquanto o pegávamos à quatro suadas mãos, suspendíamos e tentávamos acomodar do jeito que dava. Por fim tentamos embarcar o dorso do cavalo; empurramos e empurramos. Mas paramos nas patas dianteiras. Sultão era simplesmente grande demais.
“Mas e se a gente cortar o bicho ao meio?” sugeriu a moradora sem a menor cerimônia. Imagina, pensei: é uma obra de arte. Jamais, reforcei. E ficamos parados olhando um para o outro, enquanto o suor continuava a verter nossos corpos abaixo. Reconsiderei: era mesmo uma válida opção.
Refleti ainda sobre o o vitupério que estaria cometendo ao cortar uma obra de arte ao meio, mas ao julgar estética e tecnicamente o trambolho em questão, me perdoei antecipada e imediatamente. E não haveria problema, pois o concerto era só soldar.
“Pode ser”, afirmei ainda receoso, um lamento querendo brotar; mas ao mesmo tempo perguntei se ela tinha o equipamento para o corte. “Claro”, ela afirmou sem titubear, e em um minuto já estava com a ferramenta na mão.
Mãos a obra, e logo nos pusemos a lançar faíscas ao céu. Não tinha volta. Não havia espaço para culpa. ‘Tarefa dada é tarefa cumprida’, me apoiei na frase de um comandante famoso. E logo percebemos também que teríamos cortar a cabeça do cavalo. “Mãos a obra”, repetia Sandra ao me ver titubear. “Vamos lá. Força” e decepamos o Sultão.
Meia hora depois, a caçamba foi fechada.
Quinze minutos depois, já estamos na estrada; Carla parcialmente indignada, eu resignado.
Constrangidos, talvez; pois em termos absolutos, destruímos uma obra de arte. Por mais esdrúxula que fosse, uma obra. Mercia nosso respeito; e eu, de forma deliberada, blasfemei. E como Carla estava junto, vira cúmplice.
Por isso, o silêncio da volta. Ambos pensativos, talvez com a imagem da música do Metallica traduzida na cabeça. Nós, os cavaleiros do apocalipse.
Os quilômetros vão passando e o destino aparece à nossa frente. Na placa, Embu – 50 Km.
O silêncio se arrefece aos poucos. Revelação. ‘Estamos fazendo um favor’, concluímos.
“Isso não pode ser o fim do mundo”, pondero. Carla concorda.
A cumplicidade então se torna um elo de boa fé, e juntos decidimos que fizemos a coisa certa.
Dez quilômetros. Estamos em paz, nos convencemos.
Mas ao chegarmos próximos ao Ateliê, vimos um rosto que desfigurou-se: os olhos do artista que num primeiro momento esboçaram uma crescente alegria ao ver nosso carro chegando, em questão de metros se transformaram em sofrimento. Vimos lágrimas escorrerem face abaixo ainda antes de saírmos do carro; e olhamos um para o outro, apertando os lábios, enquanto ele se encaminhava para abrir a caçamba sem dizer palavra.
Olhou para o seu imperador primeiro. Tocou a obra como se a saudade se arrefecesse ao fazê-lo; como se a lembrança se diluísse à medida em que ele corria as mãos pelas pernas, pelo dorso, pela cabeça sola.
Sentia o Sultão, profundamente. E ressentia suas partes; mas resignava-se ao mesmo tempo, como se o que houvéssemos feito não pudesse ser desfeito; como se aquele passado lá no sítio, e agora finalmente, tivesse acabado; como se o vergalhão tivesse sido cortado, rompendo fortes vínculos indesejáveis, ainda que perenes, teimosos em partir.
“Como? Com o que vocês cortaram Fiona?” ele pergunta enxugando as lágrimas.
“Com um alicate de vergalhões”.
“E quem deu o alicate para vocês?”
“Sandra, a moradora.”
Sandra, a ex-mulher, viemos a saber minutos depois. Aquela que generosamente, após a providencial sugestão de cortar a cabeça da escultura, ofereceu, de pronto, o alicate para concluirmos o trabalho.
Era o começo da verdadeira história: do pregresso que volta, queimando; que ela, ardilosamente, ajudara a forjar com o maior primor: uma Tróia transfundida. Um cavalo recheado de vendeta que, conduzido por nós, conseguisse abalar o suposto malfeitor de uma década atrás. Nós nunca saberíamos.
Abalou. E não havia solda que pudesse remendar o passado.
E nada mais que pudéssemos fazer. Entramos no carro, sentimos muito e seguimos viagem.
“Acho que ele vai enterrar o Sultão”, sugeriu Carla.
“Não sei”, disse. “Mas certamente sua ex-mulher.”