Tenta abrir os olhos. Lentamente e pouco. Não se mexe. Espera. Pelo que, não sabe; não sabia de nada àquela hora. Que horas são? pensa. Não fala porque não tem voz. Está seco, seus lábios grudados querem ao menos gotas, onde estão? pensa novamente e esquece do pensamento. Quer gotas, lembra, que por acaso escorrem dos cantos dos preguiçosos olhos e chegam à sedenta boca. É como uma enxurrada, sorvida com gula e um imperceptível sorriso; mas que está lá, irônico de quem sabe que não deve, mas faz assim mesmo.
Dá vontade de sorrir ainda mais, e até abrir os olhos, mas as pálpebras estão pesadas demais e não deixam. É uma luta entre a meia-vontade deles e a força-total delas, que sempre ganhava, pois os olhos dele estão cheios de areia. Por isso era melhor calar a visão por enquanto.
A língua resolve passear, precisava de um pouco de ar. Tenta namorar os lábios, mas as gotas já tinham sido sorvidas. Mesmo assim o contato gera uma humidade extra e ele a engole, pesada, viscosa.
Estica o corpo. Tenta esticá-lo. Primeiro as pernas, depois os braços ao longo do corpo, depois o gemido. A cada estalar de ossos, um grunhido que se estende até as extremidades dos dedos.
Respira profundo, lembra do Yoga e deixa para lá.
Apesar dos olhos fechados, nem pensar meditar-melhor-morrer.
Desaba e se-vira de bruço.
Com a cara enfiada no travesseiro e os braços sem saber o que fazer, abafa sons que queria dizer, mas não tinha ninguém por lá. Estava sozinho e o fardo era escapar do sofá: levantar quando nem se consegue piscar. Quiçá se por em pé. Ou ao menos levantar o pescoço, que só consegue pender: para um lado, para o outro, e desarticulado se afunda de novo.
É melhor esperar. Raciocínio se é que há, e lembra da televisão. E também das horas, mas e o dia? Lembra que esquecera também do dia. Domingo, Sábado, retrocede. Lembra do ontem, mas não do ante-ontem; e à frente? Domingo, Segunda, está confuso, cadê o controle?
Jogado no chão, para além do braço, lá estava ele, esfumaçado pelo fantasma do homem de areia que insistia em negar a ele a transparência das coisas: tudo tendia a vulto, e o controle era um espectro distante; tendendo ao infinito, aquele oito-de-ladinho que hoje nem uma meia bomba.
De qualquer maneira, o banheiro estava longe, a pia da cozinha muito mais, a comida que já nem descia em pensamento, e até a indispensável geladeira parecia estar a perder de vista. Abri-la então, mais um esforço para além do olho aberto que, a propósito, insistia em pesar.
Mas ele tateia o chão; as mãos avançam como se carregassem um braço amputado, sentindo as pequenas fibras do carpete quando de repente sentem algo duro; pela memória uma peça de plástico; na parte superior ele reconhece botões. Sim, é o controle, estou salvo: “a televisão me deixou burro, muito burro demais” é a estrofe que vem à mente, mas ele não se importa: ‘Hoje é o dia da besta.’
Traz o remoto de volta e junto o passado recente.
Ressente, mas prefere não ver ante-ontem. Ao invés disso, força as pálpebras e com os dedos solta as pregas-da-visão para enxergar o que quer que ilumine seu rosto, de fora para dentro: no quarto escuro, um feixe que ao invés de clarear, assombra, perturba, cega o zumbi.
A cabeça lateja e não há o que fazer. Ou até que ele se dispusesse a percorrer o longo percurso até o banheiro-remédio: dez passos que àquela altura pareciam cem de subida, nem pensar! Respira lento para a dor passar. E zomba sofrendo de si. E depois gargalha pois já tinha visto aquele filme. Mas a risada não ajuda. Pelo contrário, agrava; pinta o limite do mijo.
A bexiga cede. A cueca está molhada e não há mais negociação: ele se arrasta, se põe de joelhos e lentamente chega de pé ao suado destino. E senta. O desague vai ser sentado, pois não há outra condição; não àquela hora, não naquele dia, pois a permanência ereto, qualquer que fosse a acepção do termo, não passava de utopia.
Então jorra sem potência.
Estava mole, lento, cabisbaixo e sem nenhum ânimo; assim levanta sem descarga e caminha de volta. Poderia ter passado pela pia-ali-ao-lado, tinha água; ou ido até a cozinha, mas não; ouve a um chamado do sofá e sucumbe novamente ao acalento das cobertas. Enfia-se em meio a tudo e o controle assume o comando.
Mas um títere nas mãos de braços preguiçosos é de pouca valia, tampouco age sozinho; então fica lá, espalmado na mão do semi morto que agora cochila de costas, com um dos braços sobre o peito, o outro esticado com o suposto controle que tinha a escorregar por entre os dedos, caindo no chão.
O barulho àquela altura ecoa como a explosão de bombas em trincheiras, e seu despertar assustado, como que atingido por um fragmento, coincide com a percepção de que a tela ainda estava escura, e ele a precisava clara, e com movimentos, e outros sons. Por algum motivo, qualquer ruído significava vida, um pano de fundo musical para ninar seus próximos, esperançosos passos.
On, e está ligada. Mas ele não consegue assistir.
Tenta, mas dói-se-mexer. A lombar está em prantos, o pescoço continua no limbo, e os músculos, justo eles a essência da potência, débeis. Quero água, o corpo diz mais uma vez, e o abdômen se manifesta tentando colocar a estrutura em riste, que dói também. Ele geme para cá e para lá, sons abafados pela boca no travesseiro que também baba, e sangra dentes mal escovados, bafo.
‘Água, água pelo amor de Deus’. Beberia até a benta
E como se o simples pensamento a invocasse, e um fio divino o puxasse para cima, de pronto ele se põe de pé e cambaleia rumo à fonte. Mas na geladeira só há garrafas vazias, e o espanto da óbvia descoberta celebra novamente o dia do idiota. Ele olha para a TV e a risadinha parece que é para ele.
A cabeça vai então para debaixo da torneira, gotas de lucidez que em conchas-encharcam. Ele bebe sem controle goles e mais goles e a água escorre pelo seu pescoço, peito abaixo e a cueca vira sunga. Sua nuca é abarcada por um calafrio que só para rego adentro, e ele curte o gelo que no fundo esquenta.
O homem de areia finalmente vira lama e ele consegue escancarar os olhos agora úmidos. Abre e fecha, abre e fecha, fecha a torneira e finalmente respira.
A lucidez dos olhos amplos apontam mais um caminho: comida. Deve ter na geladeira, outro pensamento impostor: nem pedaços nem restos nem migalhas. É uma vitrine de nula serventia e o seu estômago sabe. Ronca e faz doer no osso; já se passaram dias desde o derradeiro mastigar.
“Põe um roupa, sai de casa, pegue uma comida”, ele ouve um pensamento. “O dia está lindo, caminhe, alongue ao invés de espreguiçar” é o anjo do ombro direito que invisível sussurra preciosas dicas. Mas do outro lado, bem visível, tentador-e-travestido de sofá, o diabo assume o controle só-rindo. Tem a TV como parceira e o canal sintonizado.