O tempo não passa, meu deus. E o que é que eu estou fazendo aqui?
Não! Eu sei por que estou aqui. Só não acredito.
“Seu delegado, pode acelerar?”
“Calma aí, senhora; eu sou o assistente dele. O delegado já vem te atender assim que finalizar o outro caso.
“Calma, Senhor? Como é que eu posso ter calma? Eu acabei de cometer um crime e o senhor pede para eu ter calma?”
“Senhora…”
“Para de me chamar de senhora, por favor, que senhoras não fazem o que eu acabei de fazer.”
“A senhora ficaria muito surpresa.”
“Como assim? O que o senhor quer dizer com isso? Que outras pessoas fazem o que eu fiz? E o senhor nem sabe…”
“A senhora ficaria surpresa.”
“Surpresa é pouco. Olha para mim.”
“Já vi a senhora faz tempo. Aguarde que o delegado já vem te atender.
Então aguento por horas. Como se eu não tivesse nada mais o que fazer. E na verdade, nem tinha; mas queria ter, pois não queria de forma alguma viver novamente o que acabara de viver. Viver, a propósito, é uma palavra que não encaixa, pois uma vida cessara; eu a-cessara. Eu tinha acabado com uma e ao mesmo tempo não parava de pensar nela. Não que eu tivesse alternativa; não não tinha. Naquele momento de fúria, tudo podia acontecer. Tudo. Eu sabia de antemão; previra. Nostradamus na real. Eu já tinha falado para o vizinho, inclusive: “tranque a porta da sua casa”, por favor e com educação, mas ele deu de ombros. Dar de ombros, vi no dicionário: “erguer os ombros em sinal de indiferença, não se preocupar, ser indiferente.” E foi exatamente isso que ele fez, como seu eu nada valesse. E nada do que fosse meu, a propósito, pois essa indiferença não se aplica só à mim, mas a todo o meu escopo; a toda a minha amplitude, minha extensão, minhas coisas, meus pertences, meus amores. Ser indiferente! Eu podia agora mesmo escrever um tratado sobre a indiferença, mas do que adianta? Do que adiantaria eu gastar minhas energias? Esclarecer a ignorância do ignóbil? Explicar o perigo para a besta? Pérolas ao vento, pérolas aos porcos, porco que ele é. “Feche a portinhola do chiqueiro”, eu deveria ter dito, e sem nenhuma educação. Mas a ‘boa vizinhança’, a porra da política da falsidade que alguns tanto amam embaçou minha lucidez e eu aceitei aquela torta de galinha quando eles chegaram da primeira vez: “aceitam um café”, meu marido ainda disse, e eles entraram: Paulão e Margarida sentados no sofá. No meu sofá, no meu lar, na minha intimidade que a propósito nunca quis compartilhar. Mas lá estava eu, na cozinha, passando o cafezinho para os novos vizinhos do bairro.
Foi o começo do conto do vigário que jamais usou batina. Do conto que agora conto em minha mente enquanto espero para contar a história que vai de verdade-valer. Que vai para o papel do delegado e quiçá me inocentar. Mas será que sou culpada?
Estou com medo; quem é que vai me acreditar?
Fato é que quase me arrependo, quase. Ainda vejo sangue em minhas mãos, entre-dedos. Na barra da calça a mesma coisa, e cadarços cor de rosa. Será que foi uma chacina? Suo. Massacre, não. É preciso que haja mais: muitas pessoas ao mesmo tempo, é o que o diz o mesmo pai dos burros; acredito nele. Acredito piamente nele. E não sou de matanças.
Mas os tempos são outros, o mundo mudou: agora tudo é crime. Será que inafiançável? Não sei. Tenho testemunhas? Não! E o vizinho? E Margarida, que como uma flor sem água a dias, murchou instantaneamente assim que ouviu os gritos. E vociferou ainda mais quando viu a poça; e mais ainda quando percebeu a imobilidade: cabeça mole e ensanguentada-pendurada que ela abraçou como a um bebê, seu bebê crescido, agora falecido-assassinado: “Você matou o meu filhote, sua assassina”, e gritava, e gritava, e gritava. E queria me espancar. Mas com as mãos encharcadas de sangue e uma boca de dentes rangidos, eu dava a impressão de ser uma outra pessoa, um monstro sei lá, uma desvairada; e isso a manteve afastada, meio cautelosa, medindo seus avanços. Mas não seus xingos que não paravam de chegar; quando chega Paulão.
A faca escorre.
A faca cai.
A faca pulula no chão.
E respinga.
Em câmera lenta repasso a dança que se segue sem música. É a trilha sonora da película em que enxergo a mim mesma a distância. Sou a protagonista-vilã que, juro, acabou aonde estava meio que por acaso-instinto-materno. Não devia estar lá. Eu, não devia estar lá. Paulão, sim, o dono-do-morto; o responsável pela tragédia: o portão aberto. O que custava baixar a tramela? Mas não, o desleixo prevaleceu; a teimosia ganhou; a arrogância, pessoa relapsa. E agora ali no meio da poça, que incômoda ainda crescia, seu filho jazia. E agora, quando nada mais adiantava, ele veio. Agora! “Agora não adianta mais”, pensei; agora já era. Não havia mais nada o que fazer enquanto ele vinha em minha direção; e enxergava, e acho que ouvia o que eu tantas vezes falara. Ouvia as mil e uma vezes; e também naquele exato momento, naquela fração de segundo, pois num centésimo ele parou. Diante de mim, olhos em mim; eu nos dele, desafiadores minutos que não se cederam. Continuamos lá, conversando, uma conversa às avessas: discutindo, gesticulando, agredindo, tentando explicar; fizemos tudo isso sem mexer um músculo. Mas entendemos tudo. Ele viu meu desespero, viu as tentativas infrutíferas de aparte, meu desespero, minha corrida até a cozinha, até a gaveta da cozinha, a faca na mão. Não sei se conseguiu ver a ação.
Mas depois ele se virou; não baixou a cabeça. Eu me virei e finalmente fui abraçar o meu filho.
Ele pegou o dele e o colocou no colo, imóvel, enquanto saia bem devagar acompanhado pela esposa que continuava a chorar, agora mais resignada, como se também tivesse compreendido a conversa que eu acabara de ter com o seu marido.
“Número vinte três”, eu ouvi alguém gritar. “Número vente e três”, ouço novamente; e desperto. “Número vinte e…”
“Já vou”, digo impaciente; e assim que chego ao guichê para contar a minha história me deparo com Paulão.
Eurico_cp