Formigas tem Pernas Curtas

Foi um daqueles casos cujo intento era outro, mas que acabara como sempre.

É surpreendente quando Nietzsche acerta na mosca ao dizer que as coisas sempre retornam, sempre repetimos comportamentos aprendidos, cristalizados; o eterno retorno de todas as coisas, para-todo-e-sempre. É assustador sim, mas basta observar que a gente o enxerga quase que diariamente.

No caso aqui em questão, o ‘retorno se dá somente no final’; portanto sugiro acompanhar as formigas, personagens principais da história que talvez se mostrem em alguns trechos, ou nas entrelinhas do percurso, mas que definitivamente vão mudar o sabor dos acontecimentos.

Elas estavam lá, por trás daquele balcão, enfiadas num buraquinho atrás da pia, lá no cantinho da parede por onde nem a água é capaz de atravessar, mas que elas, miúdas que só, conseguem, e lá se resguardam para os momentos oportunos, que via de regra são todos os dias em qualquer lugar onde haja comida, especialmente numa cozinha; especialmente naquele dia.

Ninguém as via obviamente. Na calada do fim-de-tarde-de-domingo nem suspeitamos da farra que as bundudas fazem, camufladas por paredes e pisos, e cadeiras e mesas que as transformam em verdadeiros camaleões, sobretudo se o ambiente contribui com meias-luzes e piscantes. O que era o caso, como sempre são os bares; as hipnotizantes casas noturnas que entre o preto e o cinza escuro nos cingem de encantamento, possibilidades e certezas absolutas.

Abraços de Feliz Aniversário, conversas animadas e cada vez mais altas, e um vai-e-vem de gente pra cima e para baixo descrevem o contexto. Uma banda toca no lado de fora e as pessoas entravam para pegar bebidas em geladeiras colocadas nas laterais do ambiente, no melhor estilo supermercado de bairro. Para pagar a conta, era preciso ir mais ao fundo, onde ficava o Caixa do lado direito, somente à frente da cozinha que preparava beliscos que tinham que ser retirados lá mesmo. Os banheiros do lado esquerdo, também lá ao fundo completavam a realidade que aos poucos e lentamente se distorcia. Assim é o efeito inebriante da alegria misturada com cerveja.

Majoritariamente em pé então, e circulando entre alguns buffets distribuídos por todo o interior do bar, as pessoas regozijavam-se com festa da amiga que neste dia celebrava, todos sabiam, quarenta verdadeiras primaveras.

“O Ricardo já chegou?” pergunta a uma colega. “Estivemos juntos anteontem e até que foi legal na casa dele. Curti muito a sobremesa.”

“Curtiu a sobremesa?”

“Sim, muito. Ele fez um mousse de chocolate com raspas…”

“Jura!!! Você passa a noite com o cara e o que tem para me contar é que a sobremesa tava boa?”

“Pois é amiga, as vezes o doce é melhor que o salgado.”

A conversa para por aí, e a breve risadinha que começa a se formar logo se retrai pois o confeiteiro chega, sorridente e baboso ainda acreditando que o prato principal de anteontem fora ele, salgadinho. Coloca algumas coisas sobre a mesa e abraça primeiro a outra, depois a ‘sua’ garota, desejando tudo de bom, um novo ciclo e que tudo aquilo se repita, estou apaixonado. Não fala, mas estica as mãos, alcança o presente e o entrega: uma bonita caixa de papelão com um laço bem feito e uma etiqueta em que se lia: Madame Formiga.

Coincidências à parte, essa história não vai passar de doces, já saquei, reflete a personagem do dia que recebe o mimo, e abre e arregaça os olhos que delícia. Mas modera no agradecimento, basta um breve-beijo no rosto e dá sequência aos afazeres de anfitriã.

Vou deixar as trufas recheadas para mais tarde, lambe os beiços.

E os lambem também as formigas, cuja atenção é mais que plena, focada, aromática. As trufas foram sentidas há tempos e sua intuição lhes diz que é bom ficar de prontidão. Tudo bem que cascas de pão e amendoins, e restos de peru possam servir, mas uma Trufa recheada é bom demais pra ser verdade.

Se beliscam, enviam espiões e vem a confirmação: era tudo o que a aniversariante de fato vira, e em número de oito, e sortidas; e lambem ainda mais voluptuosamente os beiços quando chegam outras informantes, até mais atordoadas pelo auto-controle-auto-imposto pelo propósito de servir exclusivamente ao grupo.

Auto controle a propósito, do lado dos humanos, cada vez mais fora de si. Amigos e amigas e Ricardo, todos já distorcidos por aquela miríade de estímulos, continuam a embaçada celebração. As mesas estão repletas de objetos, celulares, chaves, algumas incautas carteiras; nas cadeiras, marcas de bundas que aos poucos se desfazem; nos encostos bolsas, casacos, e cachecóis que se arrastam até o chão, facilitando ainda mais a empreitada das gulosas de plantão.

O presente, escondido sob essa folia de pertences, foi ficando. Á medida que a festa avançava, também retrocedia, assim são os eventos de Domingo, efêmero-distorcidos: começam rápido, fervem em questão de minutos e acabam da mesma forma, alucinados e dissipando-se.

Ricardo já tinha pago, inclusive. Não conseguira ser nem de longe o rei que imaginara (quiça príncipe), mas conseguiu ciscar por ali enquanto deu; enquanto se permitiu, enquanto ousou olhar para si e não para ela, negando a própria vontade do olho que só queria ver o que ele não devia.

Fechou os olhos então, e partiu.

Ela, como toda boa aniversariante, ficou até o final. Meia dúzia de gatos pingados e milhares de formigas. Os primeiros esperando uma Segunda mais distante. As segundas, na espreita, esperando o Já. Aguardando a postos o doce momento que, sentiam, logo chegaria.

No dia seguinte, a primeira lembrança da festa é a do esquecimento. Enquanto toma água, a rainha-de-ontem hoje só se arrasta e acaba no sofá tentando lembrar pelo menos da metade. Mas enquanto elucubra sobre alguns acontecimentos que ela supunha mais significativos, lembra-se do que menos fora: o presente de Ricardo, as Madames, tinha ficado para trás. Então se deita e vira os olhos meio-lamento-meio-sorriso, e abraça o perene Eterno Retorno; não fora a primeira nem seria a última, ela tinha absoluta certeza, daquelas que o céu é azul, que o que sobe desce, esquecerei mais vezes.

Mas como quem esquece, e perde, sempre lembra que esqueceu, ou perdeu, compromete-se com a saga e corre rumo ao bar. Tinha combinado com o próprio Ricardo, na ocasião do mousse, um cafezinho na segunda a tarde, ah se arrependimento matasse. Mas tinha que ir, e assim traça o plano: pego as trufas no bar, como uma enquanto me dirijo ao café e, chegando lá que delícia de trufas, muito obrigado-beijinho-no-rosto, abraço de despedida e tchau eternamente, adeus confeitaria. Mas como planos são só planos, se desfaz logo de cara, fechamos às segundas.

Parte para o café então, já esboçando as possíveis respostas para a provável e temível pergunta sobre as trufas, como a de que ela mesma abrira a caixa na a festa e distribuíra tudo; ou que as trufas foram roubadas pelo pessoal da banda, ou até mesmo que esquecera (!) de verdade.

Mas optou por dizer que tinha comido uma delas, qual?

A Madame recheada, claro; suculenta e meia amarga. Chutou com um sorriso e acertou na mosca. Mas ele sorri também e o dele é de verdade. Ela sente a discrepância entre esses sorrisos e ligeira pede os cafés para diluir um pouco um desconforto que, se para ele ainda inexistente, para ela sufocante: mentira e se dera bem, mas o que a boca mostrou os olhos tentam desmentir, e assim ela queima a língua para fugir. Engole o expresso sem açúcar e despede-se do confeiteiro com o já previsto beijo no rosto.

Nada como uma noite bem dormida, ou em alerta; fato é que na terça logo cedo ela já está lá no bar para reaver as quiçá-agora-benditas madames. A esperança de que a trufa que simulara ter comido estivesse lá era um alivio dos grandes. Uma espécie de salvo conduto para livres e novos sabores.
Vai imediatamente até os fundos e encontra uma das funcionárias: “Bom dia. Olha, eu estive aqui ontem a noite; eu era a aniversariante e acontece que deixei o meu presente aqui. Uma caixa de papelão, mais ou menos deste tamanho, com um um laço…”

A moça desaparece nos fundos e só retorna após alguns longos minutos; serena e de mãos vazias, deixando transparecer um pequeno toque de ironia num sorriso que pouco se notava.
“Encontraram sim. E foi guardada no Domingo mesmo embaixo desse balcão. Mas hoje, quando foram pegar, já era.”
“Já era?”

“Sim, as formigas. Tomaram a caixa toda.”
“Como?”

“Sua caixa, com o que quer que tivesse lá dentro, foi simplesmente engolida por um mar de formigas. Disseram que havia trilhas de formigas por todos os cantos do bar.”

“Jura?”, e baixa a cabeça. Se vira rumo à porta com um grande sarcasmo-de-si estampado no rosto, e reconhece a ironia do feito. Sai a passos lentos do local, caminha calçadas abaixo, quarteirões e pensamentos à frente e, divagando em doces não comidos, tromba numa fila que saia dum comércio para ela desconhecido. Pede desculpa às pessoas e as contorna, atravessando a rua para o outro lado. Dali mais de longe sobe os olhos e enxerga, olhos bem arregalados, o letreiro do local que diz: Madame Formiga.

Baixa a cabeça novamente e sorri quietinha, mas abundantemente. Aguarda os minutos da fila e entra para ser atendida. No cardápio, as trufas que não havia comido; e outras. E do outro lado do salão, Ricardo, que olhava para ela, sorrindo de lábios fechados com aquele jeito de formiga que sabe o tamanho das pernas que as pessoas tem.

ECp

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