Desengonço

Após o banho da manhã, ele vestiu as calças, colocou as meias, os sapatos, se aprumou, e espelho. Sorriu confiante, correspondeu ao reflexo e foi tomar o café. Antes disso, uma passadinha no banheiro dos felinos para limpar as caixinhas de areia sempre lotadas ao fim de uma noite; quando nota que acabou de pisar no cocô do bichano, gatos muitas as vezes erram a pontaria.

Assim começa o dia promissor de Frederico, limpando a merda-do gato-no sapato. 

Mas Suco de Luz  é o nome do seu desjejum e ele vai bater as frutas e os legumes. Hoje o suco vai ficar da cor do vinho tinto, como também a sua camisa branca que ele acabara de vestir, pois o liquidificador já estava ligado quando ele colocou na tomada. Respira fundo e volta ao espelho, onde novamente responde ao reflexo, mas dessa vez com um sorrisinho meio de lado. Se troca novamente, mata o suco e vai. Já dentro do carro à caminho do seu universo paralelo, meio caminho andado, lembra que esqueceu o presente de Cintia em cima da mesa de jantar. Xinga uma quinhentas vezes, olha pelo espelho retrovisor, se enxerga de novo de canto, e de olhos abertos sorri grande. Não tem jeito né amigo, diz pra si mesmo, e pega o primeiro retorno. 

Já com a torta de morango na mão, ainda que com trinta minutos de atraso, é recebido com alegria pela jovem que o esperava também sorridente; mas ele, ao chegar e também ansioso, tropeça, e só para nela, com o doce apertado entre ambos. Um leve constrangimento, é claro, sempre namora com essas situações, mas logo vem um sorriso, pois ela também era assim. Trombaram um dia lá atrás, e começaram a se amar, num quarto todo bagunçado, tipo com poucos lugares para colocar o pé no chão. Um emaranhado de papéis, livros, pincéis, telas, em tudo se escrevia uma história bagunçada, a partir do nada, ou a partir da bagunça, talvez o propósito da história que se desenrola, ou tantas outras ainda por des-desengonçar.

O abraço do tropeço é vermelho e torpe. Eles se deixam cair ao chão e pintam mais uma vez sobre baldes de tinta que viram, histórias de um significado por-vir. O gozo é a melhor preguiça da manhã e assim morrem por instantes, no chão, largados e cor de letargia.

Ao despertar já é hora de pegar as crianças na escola, e vão, juntos-em-cima-da-hora. ‘Onde está minha camisa?’ ela pergunta enquanto ele procura a carteira. Ela desliza só de meias entre os pincéis que caíram e ele tenta fazer sentido de todo aquele quadro (Jackson Pollock) que acabaram de pintar.

Na fila da escola, de dentro do carro, ambos contemplam aquele mar de formigas para lá e para cá. Pais se trombam, se abraçam e encaixam na dança, cada um encontrando sua prole como que pelo cheiro. Ou depende da ótica, pois de dentro do carro eles veem uma Princesa e um Guerreiro, sujos da batalha e com o sorriso de um recreio bem caótico, se aproximarem. As portas são abertas e eles são sugados para dentro do castelo, onde arrefecem, descansando a babel.

Frederico deixa Cintia no atelier e volta dirigindo sozinho no banco da frente, seu olhar é só para trás, e ele bate o carro. Nada sério, mas o suficiente para despertar as crianças que já não estão mais no castelo, mas sim num Gol usado, gastão, endividado e precisando de conserto.

Não obstante chega a polícia! Um deleite para as crianças, aquele grito vermelho e amarelo piscando. Para o Pai, mais um emoji, aquele da carinha com os olhinhos virados para cima, lamentando o inevitável. Mas ele era assim, e bom também de conversa, e talvez mesmo por isso, pelo desengonço que o habitava. Assim leva o guarda na conversa e logo convence os filhos que aquilo tudo fora só um sonho; e que eles  podem voltar a dormir.

Chegando em casa, vira-vira-realidade, tem-se que fazer lição de casa; “cadê o material?”, ele pergunta aos filhos. “Tava no colo da mamãe”, diz a Princesa, e ele vira os olhos. E ela também entende o motivo, e ambos sorriem. “Será que serão como eu?” “Claro que não”, responde o Guerreiro com a certeza do jovem filho de quem era. E tropeça na bolinha de tênis que estava jogada ali pelo canto, e cai no chão no exato momento em que mamãe abre a porta e, vendo todos em harmonia, sorri.

ECp
#euricoescritor

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