Uma Machadada na Cabeça

“Como é que foi?”

“Fui convidado pela Estela. Na verdade, pelo marido dela, que já vai lá faz tempo. Ele já tinha me convidado várias vezes, inclusive. Sempre que a gente se encontra ele me convida. Um dia não teve jeito. Não sei nem por que ao certo, mas ele falava tão bem que resolvi um dia ir.”

‘Eu tenho um pouco de medo.’

“Sabe que não precisa, viu. Quando você chega lá já percebe na hora que o ambiente é seguro. Um sítio eu acho. Um lugar aberto, bonito. Uma casa com uma varanda com umas mesas espalhadas e uma quantidade de gente em volta, sei lá, umas quarenta, cinquenta, trinta, por aí. Não sei ao certo. Tem comida nessas mesas, mas ninguém pode comer nada. Ninguém come, pelo menos. Não me lembro direito das orientações que me passaram, se podia comer antes ou não, mas fiquei com vontade. Mas acho que não pôde não.”

‘Então vocês ficaram ali, esquentando os motores?’

“Não sei se o termo certo é esse, mas dá para dizer que sim. Foi um momento de, uma espécie de confraternização antes do evento principal. Não é todo dia que eles se encontram. E tinha também a questão dos iniciantes. Era a primeira vez de um monte de gente, incluindo a minha pessoa aqui, a propósito. A gente era uns quinze, vinte. Mas tinha cinquenta pra mais pessoas lá. Já falei né?”

‘Tinha música, dança? Ouvi dizer que em alguns desses lugares, você dança, e fica lá, viajando.’

“Nesse não. Nada disso. Muito pelo contrário. Imagina um salão. Todos fomos para esse salão. Ou melhor, um galpão, sabe; de uma fazenda. Tinha um monte de cadeiras por lá, todas apontando para o mesmo lado. A gente escolhia uma e sentava. Uma ao lado da outra. Do meu lado, por exemplo, tinha umas oito cadeiras, se me lembro bem. E em cima dessa cadeiras, cobertores. Eu não entendi muito bem, mas lembro que já estava frio. Friozinho. Eu estava agasalhado inclusive. O amigo que me levou disse para eu levar agasalhos. A propósito, isso é uma coisa interessante: os iniciantes só podem ir lá acompanhados. É praticamente proibido ir sozinho. Acho que nem dá, porque a gente não conhece e é um grupo bem fechado, então. Do que adianta querer ir sozinho. Mas no final eu até achei uma boa viu.”

‘E seu amigo, ficou com você?’

“Não muito. Mas eu acho que eu quis me afastar também sabe. Queria curtir sozinho, se é que ia curtir mesmo.”

‘Mas você já estava com dúvida? A coisa não tinha nem começado e você já cheio de dúvida?’

“Pois é. Não cheio de dúvida não, mas alguma coisa tava me incomodando, sabe. Achei muito estranho, todos muito felizes e mostrando muitos dentes.”

‘Todo mundo feliz e muito sorridente?’

“E algumas pessoas de uniforme. Ou um tipo-de-uniforme. Calças verdes ou brancas, ou vice versa, não sei. Só tenho certeza dos sapatos brancos e aquilo me deixou meio, sabe com a pulga atrás da orelha? E eram elas que ficavam na parte de um altar; tinha um púlpito lá na frente e uma pessoa que ficava lá falando. Ele também tinha os sapatos brancos. Um culto, isso! Me veio a idéia de um culto e aí eu não gostei. Parecia que eu estava numa igreja. De uma hora para outra, no mesmo lugar, fui de uma chácara para uma igreja. Eu não gosto de igrejas.”

‘As raízes do povo.’

“Ironias da vida, não! E eu lá, pronto para viajar para o amazonas.”

E ele foi. Não necessariamente para o Amazonas, mas para qualquer outro lugar, “indecifrável” nas palavras dele mesmo. E escuro. Ele definitivamente havia estado num lugar espesso; o obscuro parece que tem essa cor, e era lá que habitava agora; quando andava, ia tirando objetos escuros da sua frente. Eles flutuavam e ele os tirava com as mãos em frente ao rosto, à frente. Não sabia exatamente o que era. 

Caminhava. Andava sobre-a-sombra, uma sensação estranha. As paredes ao lado, pois a cerração era tanta que ele não conseguia ver o horizonte, estavam próximas. O cerco se fechava, como se estivesse no ‘Quarto do Pânico’,  Jodie Foster que o salve. Mas não, não tinha para onde ir, senão que para frente, era essa a viagem. Mas quer quisesse luz, o que via agora lembrava mais a noite, os becos, aqueles latões de lixo caídos no chão esparramando alienígenas. Sim, é o que viram depois de mortos.

‘Estou no lixo’, pensava. Mas então, do ralo foi para d’entro d’água, e não era aquela água que vem à mente quando se fala dela. Nem clara, nem a do mar que espera o sol, ou a do rio que desliza em serpentes, nem a do mergulhador, ou dos tubarões do discovery channel, mas a do Ganges, do Rio Tietê, do Citarium, da Bacia do Riachuelo*, do mortífero Karachay. Todas elas misturadas era lá que ele estava, nadando sem máscara.

Subiu para respirar e se viu no barracão, um suspiro de alívio! Desconfiava da verdade, mas percebendo nos semblantes ao lado, serenidade, tranquilizou-se apesar da lucidez que à cada escurecer era posta à prova. Sentia-se pleno, mas sonolento. Tinha os pés no chão, mas era partícula; e foi soprada.

Acabaram os pigmentos. Não havia luz, nem todas as cores. O tom era das trevas e ele embarcou novamente acompanhando o ritmo do silêncio, que só era quebrado quando as músicas religiosas que tocavam no galpão capturavam seu negro e induzido devaneio. Mas a profundidade o atría-sem-querer. Fechou-se à música sacra, deixou-se levar e fluiu esgoto adentro. 

Algumas coisas boiavam como nos rios, mas andavam menos; eram mais lentas. O visco não era água, ou era-há-muito tempo, pois aquela nojice mais parecia com o óleo de motor que sai aos pedaços de qualquer tanque velho. Era por ali que ele andava. Mas quando abria os olhos, o que via era um monte de gente com cobertores no colo e dormindo com ares tranquilos. E ninguém abria os olhos para compartilhar com ele sua aflição. Portanto fechou os seus novamente e deixou que aquela correnteza lenta e viscosa o levasse, sufocado-de-ansia, ao formigueiro.

Elas subiam por suas pernas ininterruptamente, e infinitamente como em looping. Ele olhava de cima para baixo apavorado e via aquela revolução de formigas, suas pernas se tornando negras-em-movimento fazendo coçar. Ele sentia a coça, mas seus braços estavam duros, como que paralisados por venenos de milhões de perninhas. Até que foi coberto por elas, e levado embora como aquela folha carregada por um única operária.  O fim da linha não havia. Estava acorrentado a outros, presos-por-correntes, caminhando-cabisbaixo, toldado por ‘pés direitos’  ainda mais baixos que o faziam rastejar junto a insetos que já conheciam a caverna para onde fora levado em suspensão.

Ele queria sair de lá. “Meu, eu tenho que sair daqui de qualquer jeito!” ele repetia para si mesmo sem nenhum resultado prático, porque estava em vigília, quele estado de sonolência supostamente controlada que engana. Disfarça o que se acha naquilo que deveria ser, e brinca-se de esconde-esconde sem nunca de verdade se achar. 

A música cessa lentamente.
As luzes são acesas e se percebe um movimento. As pessoas ao redor abrem os olhos, mechem os cobertores, espreguiçam. Abrem as sonolentas bocas e bocejam gostoso, sem pressa. Se esticam novamente enquanto o viajante das negras profundezas tenta fazer o mesmo, mas sem nenhum prazer. Simplesmente estica o corpo duro, congelado, frio-querendo-quebrar e se encolhe num lento e temporário despertar. As luzes que se acendem ajudam, mas seus tristes olhos opacos acusam. “Está tudo bem”? alguém pergunta, e ele calmamente serena. 

Do púlpito vem algumas informações e ele as dispensa rapidamente. Continua semi; mas percebe que algumas pessoas se levantam. E começam a formar filas. E todos fazem o mesmo enquanto aquele lá à frente diz que quem estivesse bem, poderia, verbo poder, continuar. ‘O que é o ‘gosto de terra’ para quem já está na movediça?’ ele sorri, se levanta e segue a manada. O elixir do santo logo ali à frente para mais uma dose. “Por que?” se pergunta, e segue adiante que ‘sou guloso’, foi a resposta. Mas a razão plena já não era mais sua aliada, e ele sucumbe às maravilhas do grande estado do norte. Devora lentamente aquela infusão, e volta para seu lugar, ou para onde quer que depois-fosse. 

A areia se materializa. Ele tinha pensado na terra, mas veio fina-como-de-praia e ele estava se afogando. Só sobravam a boca e as narinas para fora quando ele viu logo acima da sua cabeça alguns cipós quase-ao-alcance. “Talvez se eu conseguir erguer meu tronco”, e o esforço foi hercúleo, mas quando os alcançou eram cobras peçonhentas que picavam seu braço e ao mesmo tempo o tiravam da lama. Um doce amargo que virou putrefação em questão de segundos. Estava a salvo, mas morrendo.

Precisava de um ar. Foi ao banheiro. Outros já o haviam feito e resolveu fazer o mesmo. Abriu e fechou a porta de vidro deixando todo mundo lá dentro e caminhou através de um jardim para uma outra casa onde supostamente acharia o toalete. Não importava, pois o que ele queria era existir. Achou-usou e aproveitou para se olhar no espelho. Estava lá, em carne e osso, respirando, limpo. Não havia nadado no esgoto ou sido picado por cobras peçonhentas. Simplesmente dormiu e teve um sonho ruim, concluiu enquanto voltava lentamente para o gramado, contemplando umas grandes árvores que circundavam o ambiente. Se mostravam majestosas, iluminadas pela lua, e verdes em toda sua infinita, variância; e todos os tons estavam vindo às pupilas dilatadas quando foi surpreendido por um dos porteiro-sacerdotes que o colocou de volta-porta-adentro. Ressentido-sucumbiu, pois a viagem lá de fora prometia cores, enquanto a de dentro, mais negritude, ele previa. E quando se sentou e novamente desceu as pálpebras, eis que Nostradamus. A jornada não tinha acabado e ainda faltavam pelos menos sessenta minutos para a aterrisagem. Muito tempo para o são, para ficar ali sentado sem fazer nada. Mas para o viajante que se entrega, mesmo que para o desconhecido, os ganhos podem ser ainda maiores. O trem perdido na estação, o prato de molusco pedido às escuras, o guia-que-engana, tudo de certa forma soma, era uma crença que nenhuma raiz mística do norte corromperia.

Aprenderia com o esgoto, com os rios poluídos, com os becos sem saída, decidiu. Cobriu-se para a reta final do desatino e pulou de cabeça para dentro daquela movediça que logo antes o sugava. Mas dessa vez ele ondulou por debaixo da areia e encontrou água. Suja ainda, mas líquida, oposta ao denso caldo de nanquim dos ápices anteriores. A tinta se diluíra um pouco e ele nadava numa espécie de aquarela monocromática; escorria junto à tinta enquanto transitava de um cinza ao outro. Tinha se transformado na serpente que o picara e que agora rastejava naquela matiz aquosa usando seu corpo como pincel, espalhando curvas que fluíam ao sabor da vigília. Pintava um quadro impressionista e invocava a luz,  o personagem principal. Mas os atores daquela história ainda assombravam e apagavam as velas que ele queria acesas. Dá-se uma luta intensa entre serpentes e fantasmas e do confronto pingam gotas coloridas que o despertam.

Ao seu lado as pessoas começam a se mexer. Olhos são abertos e cobertas são deixadas de lado. Ninguém se levanta, como se nem conseguissem. Ou nem quisessem, pois seu semblante é de paz, bem estar e glória, melhor ficar por lá. Espreguiçam e sorriem. Inspiram e expiram gratidão, que a noite foi ótima.

A sequência do seu despertar, pelo contrário, é um silêncio quase constrangedor. Enquanto todos dizem que ‘foi bom demais’, ele suprime de dizer tudo o que vivera. Mas quando questionado diretamente sobre como tinha sido sua experiência, disse que um dia escreveria um texto sobre isso. 

Ainda não tinha título.

Ecp
#euriscritor

 

*Bacia do rio argentino Matanza-Riachuelo, considerado por especialistas como um dos dez locais mais poluídos do mundo, assim como todos os outros rios citados na passagem: Ganges (Índia), Tietê (Brasil), Citarium (Indonésia), Karachay (Rússia).

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