Nascer, Gozar, Criar

“Outro dia me disseram que nessa vida temos que exercer a liberdade, que sem ela somos nada, ou quase: ’eu-robô’, copião, tecla tecla e a marchinha sem tesão, um após o outro enfileirados, terno e gravata ou terninho, sainha, pantalona ou bermudão, o que quer da moda seja, e andamos apressados, uma verdadeira massa indistinta e embolotada, passando pelo moedor com destino definido, uma morte reciclada: nasce um, nasce outro, e na pastelaria da vida moderna somos fritos em padrão para um selfie bem armado, copiado, filtrado, sorridente, sempre sorridentes na moldura do telão.”

“Não se cria nada, só masturbação fastidiosa e passatempo mascarado numa rede sem peixe. Somos nós os pescados-net de olhos vidrados madrugadas adentro e o salmão na geladeira, frozen, esperando o meu descongelar.”

“Acorda menino, diz ela, loira, e o louro e os pavões saçaricando em palmas que te quero sempre mais… e holofotes, o gozo depois do orto, o jorro da vida que agora em capsulas de colágeno e cirurgias de mamas e xoxotas perpetuam o finito numa ode ao perfeito ‘nós-androide’, que a propósito não mais ejaculamos.

“E já deixamos de nascer, pois esquecemos de criar.”

“O espermatozóide está deprê; se perde em vôos sem destino como um pássaro sem asas, ou acaba congelado num laboratório de futuros humanóides, os novos replicantes. E assim, pela ereção condicionada, aguarda o broxante lançamento: quatro, três, dois, um, pingou. E como uma rolha de champanhe sem pressão, uma flecha de um arco sem tensão, sem potencia cai na esteira de um Ford preto e perpetua seu alelo infinitamente duplicado a bel-prazer do seu patrão.”

“Com os bolsos cheios de dinheiro e mil sacolas, renasce, agora sim goza e compra um quadro. Pendura na sala, arte. Regozija como se pintor o fosse e de olhos fechados contempla com orgulho a lembrança do oportuno lance feito numa casa de leilão: dou-lhe uma, dou-lhe duas, ‘é meu’.
Dou-lhe três, quatro, dou-lhe cinco, mil penetrações que como mágica viram estátuas, ferraris e pianos de caudas, que elas nunca são suficientes para aquele gerador dos deleites em cadeia.”

‘Mas e a liberdade” – alguém perguntou – “como é que fica nesse lago de mil repetições?’

“Temos que exercê-la. É vontade própria, se conquista e se pratica; se no ócio, ela morre, hiberna como os velhos ursos e persevera no hábito da inação. É muito fácil sucumbir à indolência.”

‘Mas como, se já nasci, gozei, e vivo?’

“Crie, cidadão. Use as mãos, pegue no pincel, escreva uma linha, duas, um milhão de linhas desconexas, não importa; observe o mundo ao seu redor, olhe as árvores, contemple sua cor; sei que parece sempre a mesma, mas não. Observe por alguns minutos; sente à frente dela, na calçada e veja. Fixe o olhar no caule, vá subindo lentamente às folhas e assista seu tremular, sinta o vento. Pode ser até que veja um pássaro, um macaquinho, ouça um miau ou a voz de uma cigarra. Fique lá, não vá embora, não saia correndo, divague, feche os olhos. Atente.”

“E todo esse processo durou apenas alguns minutos.”

“Agora pegue toda essa fresca memória e leve junto com você. Mas antes, passe numa papelaria e se encha de lápis de cor, giz, pinceis e tintas. Pegue um papel em casa e recorde, revisite a árvore agora melhorada: é mais alta, mais cheirosa e com verdes infinitos; respire pela tinta o sabor de cada cor e sinta sua fotossíntese a cada inspiração. Exale, profundamente. Sorria que seus dedos estão sujos. E no espelho, no banheiro onde habita a pia da higiene, você vê agora lábios verdes, um nariz amarelo e bochechas de magenta. Uma gargalhada. Foi pintar uma árvore e acabou no picadeiro.”

“Mas criou, entende? Produziu algo a partir das próprias mãos; e da própria observação, da própria idéia, da alma, da sua, da própria, da própria, repito, da apropriação dos exclusivos movimentos sem nenhuma guia ou nenhum manual do passo a passo. Na pele de um palhaço recém nascido brotou um pintor a lá Picasso, quem sabe.
E foi só o seu primeiro, sentiu?”

‘Enquanto falava, tentei imaginar o que disse, a árvore e tal; e eu pintando, ou tentando rabiscar alguma coisa, colorir de alguma forma o que me fez fantasiar.’

“Sim. É esse um dos exercícios libertários; aqueles que induzem a criar. E a partir daí, é a mão na massa, ou no barro, na guitarra ou na gaita de fole, nos turcos fios que tecem, na máquina de escrever, na caneta de nanquim, na areia dos formatos arbitrários, na água que absorve, empapa e transforma, inventa.”

“E são dessas mãos compromissadas com idéias que a esteira para, que a produção em série oxida para dar a ela, a ferrugem, uma outra acepção, porosas partículas que se misturadas ao sabor do criador, lubrificam o impossível, e engrenam o motor da fantasia.”

“Fadas e monstros, dragões cuspindo fogo, homenzinhos antenados e mortais vespas de cristal; unicórnios de dois chifres e vacas submarinas na festa do peão de Atlântida, todos agora personagens de um novo olhar, inventivo, ilimitado, livre. Que vê além das estrelas, por trás do mundo, abaixo do oceano, dentro do fogo, através do gozo primigênio e dá vazão a novos rendimentos intelectuais.”

“Assim, renascemos novamente, que a morte não me pega mais. Ou pega, mas não cesso de existir pois a arte é legado, crio; e dessa forma atravesso gerações, dedilhando, pintando, escrevendo, esparramando e misturando receitas, cores e sabores, dançando, cantando, tamborilando novas composições; pendurado novos quadros, que não os de leilão.”

“A moldura se rompeu e a ave de lá fugiu.
Está naquela árvore que você mesmo desenhou.”

 

Ecp

#euriscritor

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