SUSTENTANDO OLHARES

Por que ela não olha para mim? Tem medo? Não gosta? Mas nem me conhece. Serei assim tão acanhado? E eu por que não o encaro? Por que não consigo pegar-aquele-par que está justo ao lado do meu?

Pegar olhares, assim dei nome ao exercício que fazíamos. Começar de mãos dadas e olhos fechados para depois encontrar os olhos de alguém. Simples assim, dois que viram quatro e que perduram o quanto a gente aguentar. A palavra é sustentação, mas cada par já tem o seu e fico só, a primeira angústia, olhando olhos já tomados. O tempo não passa; ninguém parece se mexer. Mas num instante sou fisgado e caio em transe. Quero olhar para o teto, para o chão-qualquer-lugar; tudo para não avistar aquele que me vê. 

Supunha querer companhia mas não quero mais. Aquela solidão por não ter sido o escolhido nesse ponto me acolhe e eu prefiro até fechar a vista, mas quando levanto as pálpebras, o tempo do outro já passou e eu caio novamente em solidão. Mas experiente da rejeição de breve-outrora, me posto em alerta e procuro o momento da ação: o difícil momento de olhar mais uma vez. Mas se olho ou sou olhado é questão de ponto de vista; e tanto o seis como o nove me intercalam.

Giro em torno de globos alheios na tentativa de construir meu próprio dueto; que se perfaz num Jazz. Um improviso de musicalidade sem som, mas que toca pelo olhar e vai-se embora. Vem um outro olhar de baixo, é o encaro do Diabo; que pavor das olheiras que até hoje me assombram. Ainda bem que breve, não iria aguentar muito tempo.

Nem mesmo escapara de uma armadilha e já estava em outra: um olhar com dentes. Um sorriso escancarado me esperava bem ao lado. Sorrio também: a metáfora da felicidade cai como uma luva quando queremos agradar, e porta da alma se escancara: sou dilacerado, fuçado por dentro, uma fratura de alma exposta e vísceras que penam. Quero olhar, mas sou eu o espiado! Ela é a médica e eu o monstro, mas logo eu viro doutor e ela toma remédios; depois eu sorrio enquanto ela cansa dos dentes. A boca se fecha e nos damos por completos.

O tempo para refletir é mínimo pois o olhar é agora, recém colhido, fresco e sedutor-lá-vem-ele, lá de cima e só consigo circundar sua expressão: as orelhas, as grossas sobrancelhas, o nariz que é meio torto, os lábios que se abrem. Ouço com atenção, tentando conhecer a ele; mas dispondo todo o meu ouvido ao seu olhar, é ele que entra e me deixo vulnerável. Assim reflito sobre a verdadeira atividade que acontece dentro de mim: uma poderosa reflexão sobre a compreensão dos olhares e do poder que emanam, e tento ressignificar aquele momento; mas ele já devia ter visto o que queria e não estava mais lá. Me trocou por outro olhar.

Fica a suspeita-por-quê me deixou? Ou a questão é uma disputa? Como é natural, o hábito mal jogado pode assumir o comando e passamos a olhar da forma como sempre vimos, especulando, julgando e fazendo as conjecturas que cabem exclusivamente a cada um.

E como são diferentes: as belezas que se conjuram a partir de olhares mágicos. Cada um a sua maneira, são maquiados pelo olhar de quem espia com interesse; e a fotografia que tiramos quando olhamos brilha. Todo mundo ficou mais bonito, e por pouco ao pé da letra, pois se não foi num piscar de olhos, foi num olhar que insistiu em ficar.

Encontro os de Adriana; ela encontra os meus. Pinta um sorriso-entrão, casual-pretensioso, mas negamos o impulso pois a roda era serena – tinha que ser -; então engolimos aqueles dentes que queriam sair e fechamos os lábios que queriam abrir, jogando o jogo do olhar que queria parar de gracejo. Viraram malícia e trejeitos e o corpo todo passou a falar. E nossos olhares se tornam profundo-infinitos. Eu me infiltro nela, ela se insinua em mim: ela me pergunta e eu respondo; e vice versa me seduz, diz verdades, eu descubro segredos.

A história se engendrava e nós não desgrudávamos. Tecíamos um fio narrativo a partir dos cílios que se alongavam, das sobrancelhas que voavam e do perfume que emanávamos, distribuído pelo ventilador que soprava nossas intenções para lá e para cá.

O tempo para nós parou. Mas a roda não, e os pares que se perfaziam a cada quinze, trinta segundos, perderam para sempre nossos olhares; e nós os deles. Camuflados pelas buscas dos outros por pupilas alheias, passamos despercebidos e ficamos ilhados-em-nós, felizes náufragos com tempo suficiente para que as intenções já especuladas criassem uma espécie de corpo. Uma energia quase palpável que fluía em linha reta de um ponto ao outro do círculo: nossos olhos, ciclopes. 

O beijo seria de borboleta não fosse o próprio monstro grego, forjador dos raios usados por Zeus, a forjar agora línguas que, em chamas, se retorcem numa dança que nos cegou-escancarados.

Como numa caverna, onde sem luz só se tateia, foi o que fizemos. Os dedos se enlaçaram e depois os braços. Minhas mãos estão na sua nuca, entre fios; as dela nas minhas costas e as roupas em nenhuma. Nunca houve roupa. Nos deitamos no espaço e flutuamos ritmados numa dança que não precisa de luz; pois ouço um jazz, saboreio morangos, toco sua seda da índia e sinto o aroma do sândalo. Eu gosto de rock, pêssego, a textura do linho e o cheiro das folhas verdes, da terra molhada. E ela também me sente-os-sentidos.

Fundimos. O calor que nos abrasa nos molda e retorcemos em busca da lava perfeita; do fluido derretido que escorre trilha abaixo ao encontro do mar, em tons de vermelho; e que quando se encontram, explodem num exótico borrifo esfumaçado, o gozo rugido dos vulcões, que nos desperta e demora a aquietar nossos corpos suados.

Ainda ofegantes abrimos os olhos. Os outros pares já estão escancarados e se dirigem a nós, esperançosos. Mas eu simplesmente atravesso aquele diâmetro que me separava de Adriana, pego suas mãos ainda úmidas e caminhamos juntos para nossos lugares sem dizer palavra, enquanto a roda se desfaz em absoluta incompreensão e respeitoso silêncio para o seguimento da nossa aula de teatro, que jamais acabaria.

Ecp
#euriscritor

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